Opinião, por Rafael Dragaud: Vida que segue
Rubem Braga dizia que há mentiras necessárias à alma — talvez esta seja a minha
Escolhi uma mentira para título. Mas não para iludir quem me lê. Digo e repito para mim mesmo: vida que segue. Tentando me convencer, tentando reencontrar o compasso da minha respiração. Mas, sinceramente, não estou conseguindo. Rubem Braga dizia que há mentiras necessárias à alma — talvez esta seja a minha.
O sol tem nascido toda manhã, e esse é um milagre cotidiano que sempre me emocionou. Mas desde a terça-feira, 28, só meu corpo tem seguido — minha alma parece contrariada, parada em algum lugar que não alcanço. Cumpro a rotina: levo meu filho à escola, sigo os compromissos, mas tudo em mim parece deslocado, como se o mundo continuasse e eu tivesse apenas ficado.
A chacina recém-ocorrida na Penha me atravessou como uma rajada — e não encontro palavra que sirva. Sinto uma insuficiência evidente de linguagem para dizer os tempos atuais. Como adjetivar o insuportável que somos obrigados a suportar? Como nomear o inaceitável que, de tanto repetir-se, se confunde com a paisagem? Como suportar que mais de uma centena de mortes violentas seja chamada de “sucesso”? Quando se percebe que está diante de algo que só se pode descrever como um “insuportável cotidiano”, entende-se que a realidade já não desafia apenas a linguagem — desafia o senso.
O mundo tem pedido novas palavras — ou talvez tenha desistido delas.
Eu, pelo menos, tenho. Sinto que o idioma envelheceu antes da minha consciência. Que as palavras já não sustentam o peso do que tentam dizer. Ou o mundo está do avesso. “Tragédia”, “chacina”, “barbárie” — termos que antes estremeciam, agora soam burocráticos, gastos. Ou pior ainda: viraram promessa de campanha, markering político, meta de governo. E o espanto, que era um reflexo humano, virou luxo de quem ainda se permite sentir.
Não estou dando conta. Não estou dando conta da manipulação midiática que convence de que a vida melhora com a morte de alguns, de que a paz se conquista com a guerra, de que a justiça precisa ser feita com sangue. O sentimento de humanidade está em extinção — e a palavra “vida” passou a variar de sentido dependendo do CEP.
Ela não vale nada quando se está na favela e recupera sua aura sagrada quando se entoa um louvor num templo. Essa conta não fecha. Eu não estou dando conta.
Talvez sejam tempos bárbaros, como diria Hannah Arendt, que ao ver a civilização converter-se em fábrica de cadáveres, escreveu: “a morte da empatia é um dos primeiros e mais reveladores sinais de uma cultura à beira da barbárie”. E é exatamente isso que me espanta: o quanto a empatia se ausentou do nosso cotidiano. Sentir virou fraqueza, pensar virou incômodo, e comover-se, sinal de ingenuidade. O desânimo me ronda. A vida não está prestando. E lembro então do poeta israelense Yehuda Amichai, que escreveu em “Memorial Day for the War Dead”:
“The earth is full of decomposed bodies,
but the heart remains tender.
Every name carved in stone
is the name of someone who could have loved.”
(A terra está cheia de corpos decompostos,
mas o coração continua terno.
Cada nome gravado na pedra
é o nome de alguém que poderia ter amado.)
Essa lembrança me atravessa. Porque é disso que se trata: a morte não é estatística, nem argumento, nem troféu. Ela é o vazio que deveria unir os vivos — mas hoje apenas nos separa.
E eu, que abri com Rubem Braga, volto a ele — que dizia que a crônica é “um modo de resistir à pressa e à insensibilidade”. Talvez escrever ainda seja meu último gesto de resistência. Não para encontrar consolo, e nem esperança, mas por teimosia.
Rafael Dragaud é roteirista, diretor do show da turnê “Tempo Rei”, de Gilberto Gil, trabalhou na Globo por mais ou menos 30 anos como diretor-executivo do núcleo de variedades da emissora, responsável por programas, como “Conversa com Bial”, “Mais Você”, “Encontro”, “É de Casa” e “Altas Horas”.
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