
Que estranho isso, alegria com hora marcada.
Sexta à noite encaixoto as mágoas, passando o barbante apertado para que as mais renitentes não consigam escapar, e deixo-as no maleiro, ao lado dos cobertores (que só saem de lá no inverno) e de algumas dores (que, espero, de lá não hão de sair tão cedo).
As dores eu lacrei em grandes envelopes pardos no último Natal, outra época em que a alegria avisa com antecedência que já está a caminho, e eu que invente motivos para hospedá-la na alma.
No sábado de manhã, espalho serpentinas pelo salão da memória, atiro pedacinhos coloridos de saudade, lanço perfume num lenço com monograma (a minha inicial ainda enlaçada à tua, como na foto que rasguei) e deixo a alegria entrar.
Ela chegará cantando “Manhã, tão bonita manhã / Na vida uma nova canção”, como fazíamos em todas as manhãs de Carnaval. E ficará comigo o domingo inteiro, insistindo que aquela velha fantasia ainda me serve e que é preciso botar o bloco na rua, gingar pra dar e vender.
Darei uma desculpa, farei um chá, até que ela se conforme em ver da janela o trio elétrico, o bloco, o jongo, o corso, a escola, o afoxé passar.
– É preciso cantar e alegrar a cidade! – dirá a alegria, legislando em causa própria.
Temos ainda dois dias, digo eu. Aquieta-te, é segunda-feira, a folia mal começou. E ela, esquecida de que tem sido assim em todos os carnavais (a alegria tem memória curta) deixará que a segunda-feira escorra mansamente, entre a lembrança de um beijo roubado num baile, um olhar jamais identificado sob a máscara, um roçar de cotovelos que não teve fôlego para virar sequer aperto de mão.
Na terça, a alegria e eu estamos mais reflexivos. Ela me diz que não fique triste, que este mundo é todo meu, que ela é muito mais bonita que a … – e não permito que pronuncie o nome.
Falamos da saudade, mal de amor. Da saudade, dor que dói demais. Mas falamos baixinho, para que as dores não despertem no maleiro, e alvorocem as mágoas. Comentamos que amanhã tudo volta ao normal, que é preciso deixar o tempo passar, o barco correr, o dia raiar.
Na quarta, a alegria despede-se de mim. E é de cinzas seu enxoval. Viveu apenas um Carnaval.
É hora de rebobinar as serpentinas, recolher os confetes, um a um. O perfume já terá se esvaído do lenço, e as mágoas poderão retornar às suas almofadas, aos seus esconderijos nos livros, nas gavetas, nos discos, no espelho.
Não gosto dessas visitas com hora marcada, no Natal, no aniversário, em que tenho tempo de me preparar e fingir que estou alegre.
Prefiro quando a alegria chega sem avisar.
