Crônica, por Eduardo Affonso: O Marcão
Vinha pela Graça Aranha quando um sujeito passou a me gritar (Doutor, Doutor!) e, apesar de eu não ser doutor, a coisa era comigo.

Vinha pela Graça Aranha quando um sujeito passou a me gritar (Doutor, Doutor!) e, apesar de eu não ser doutor, a coisa era comigo.
Parei, ele se aproximou, todo amistoso (Não se lembra de mim?), me estendendo a mão.
Não, eu não lembrava. Não mesmo.
Ele parecia querer que eu me lembrasse (Não lembra? Onde é que o senhor trabalhava em 2007?) e não largava minha mão.
– Na Barra – respondi, depois de relutar um pouco.
– Pois é, na Barra! Tá no mesmo endereço? Lá no…
– Não, já me mudei do Barra Plaza.
– Não lembra de mim no Barra Plaza?
Quem diabos era o sujeito?
– O senhor não tinha um sócio? O, o… (sim, eu tinha um sócio) Pois é, o senhor tinha um sócio, o… o…
Falei o nome do sócio.
– Isso, ele mesmo! Como é que ele está?
– Não sei como ele está, há muito não nos falamos.
– É, já vi que o senhor não lembra. Mas eu me lembro muito bem do senhor, lá na Barra, do seu sócio, o… (e falou o nome). Eu agora estou aqui no Centro, vendendo perfume. Toma um aqui, pro senhor, de presente.
E me entregou um frasco embalado num pratinho de isopor, desses de vender coxinha em padaria, imediatamente acondicionado num enorme saco preto de plástico.
Eu estava a caminho de uma reunião com um cliente, não ia chegar carregando aquilo. Agradeci.
– Olha, não posso aceitar…
Ele me olhou, profundamente humilhado:
– O senhor não vai me fazer essa desfeita, doutor? Estou lhe dando um presente, e o senhor recusa?
Eu tinha de recusar: odeio perfume, odeio sacos plásticos, odeio chegar em reuniões carregando sacos plásticos pretos, ainda mais com perfume de camelô dentro, e odeio quando não reconheço alguém que parece se lembrar perfeitamente de mim.
Ele desamarrou o saco plástico preto, rasgou a embalagem e lançou um jato do perfume barato na minha direção
– Veja como é bom, doutor, perfume bom, de qualidade, eu estou lhe dando de presente, e o senhor me faz essa desfeita!
Só havia uma forma de escapar.
– Olha, me deixe o seu telefone, acabando a reunião eu te ligo e pego o perfume (mentira) e aí a gente conversa com mais calma.
– Doutor, leva dois, então! – e enfiou mais um frasco no saco plástico preto, e o cheiro doce me transportou aos ônibus lotados em Salvador, à minha única lembrança ruim de Salvador.
Apertei a mão dele, antes que tentasse, mais uma vez, me passar o saco, agora com dois perfumes, ou me esguichar mais perfume ainda.
– Depois da reunião eu te ligo, não posso mesmo carregar isso. Até!
– São só 80 reais, doutor, cada um, mas estou dando de presente.
(Salvador, 4 da tarde, ônibus lotado subindo do Comércio pra Cidade Alta, sem ar condicionado: o mesmo cheiro me subia agora das mãos, pelos braços, tomava as vias aéreas, intoxicava o cérebro e, como no ônibus lotado, não havia por onde escapar.)
– Me dê o seu celular, depois da reunião eu te ligo e pego o perfume, um frasco só – e saquei o celular para anotar o número para o qual eu nunca iria ligar.
– Me adianta algum pro almoço, doutor.
– Agora não, estou atrasado. Prazer em te reencontrar, como é o seu nome mesmo?
– Marcão, doutor, Marcão. O senhor não lembra, né?
Não, não lembro. Não conheço nenhum Marcão. Nunca conheci nenhum Marcão. E quando finalmente me livrei do Marcão foi que comecei a me dar conta de que eu mesmo havia lhe dito tudo que ele parecia saber a meu respeito: que eu trabalhava na Barra, no Barra Plaza, tinha um sócio que se chamava….
Assim que pude, lavei as mãos e os braços – uma, duas, três vezes – e o perfume me acompanhou por toda a reunião, e até o fim do dia, e me persegue até agora, mais do que se eu tivesse caído no conto, dado um troco pro almoço em troca do “presente” e carregasse ainda o saco plástico preto.
Se você estiver pelo Centro, é capaz de encontrar o Marcão – sujeito amistoso, um enorme saco preto nas mãos, baita sorriso nos lábios, e uma lábia daquelas.
Você pode não se lembrar dele, mas ele certamente se lembra perfeitamente de você. Seja você quem for.
