Crônica, por Eduardo Affonso: Livro, o cachorro encadernado
Devia ser muito difícil viver na Antiguidade

Devia ser muito difícil viver na Antiguidade.
Os egípcios, por exemplo, não conseguiam virar a página depois do fim de um relacionamento. Como escreviam em papiros, podiam, no máximo, enrolar e tentar seguir adiante. O que, psicologicamente falando, não devia ajudar muito a superar o trauma.
Entre os sumérios, a privacidade era um bem valioso – tanto que nenhum mesopotâmio jamais disse que sua vida era um livro aberto. Podia, no caso dos mais abusados, ser um tablete de argila exposto – mas não era a mesma coisa.
Filósofos por natureza, os gregos clássicos nunca julgariam um livro pela capa. Julgariam, possivelmente, um pergaminho pela tampa da caixa – metáfora não muito à altura da sua elegância.
Na Roma antiga, nem mesmo os mais cultos dos oradores tinham livros de cabeceira – só uns códices empilhados no cartibulum junto da lamparina, ao lado do lectus cubicularis, e olhe lá.
Por outro lado, na China da dinastia Shang (1600–1046 a.C.), não há registro de escritor que tenha tido bloqueio criativo diante da página em branco. Empacavam mesmo é quando estavam, de estilete em punho, cara a cara com escápulas de boi ou cascos de tartaruga – certamente muito mais ameaçadoras. Na ocasião, a mente não dava um branco: e eles possivelmente diziam “Me deu um amarelo”, porque era essa a cor das escápulas e cascos.
Não nos damos conta, mas estamos, do título à contracapa, do prólogo ao epílogo, impregnados do simbolismo do livro, da escrita. Procuramos ler nas entrelinhas (como dificilmente conseguiriam os mesoamericanos, com seus glifos). Fazer de cada etapa da vida um novo capítulo (impossível para os germânicos e suas runas). Exibir a estante bem sortida nas laives e podiquestes (algo inviável para as pouco instagramáveis prateleiras com as tábuas enceradas dos romanos ou com as tiras de bambu dos chineses).
O livro, esse que conhecemos e acumulamos (sabendo que jamais vamos conseguir ler todos), só surgiu na Idade Média. Tornou-se mais acessível depois da invenção da imprensa (ali por volta de 1450) e teve seu apogeu no século XX – quando havia até quem vendesse Barsa (16 volumes!) de porta em porta (e quem comprasse!). Mas, em breve, “lombadas” e “marcadores de página” serão arcaísmos para uma geração alfabetizada no tablet, com e-books.
Entretanto, os livros sempre estiveram, em espírito, entre nós. Fosse Monteiro Lobato contemporâneo dos pelicossauros, diria que “Uma Pangeia se faz com australopitecos e inscrições rupestres”, ainda que nem uns nem outros existissem naquela época – o que faria do pai de Emília e do Visconde, desde então, um hominídeo muito adiante do seu tempo.
Tivesse vivido há cerca de 50 mil anos, José Martí teria dito: “Matar um mamute, ter pelo menos sete filhos e gravar um petroglifo numa rocha: três coisas que todo sapiens, neandertal ou denisovano deve fazer durante a vida” – o que não era pra qualquer um, já aos 35 anos o homo sapiens e seus colegas já estavam na melhor idade.
Eu sou dos que, como Borges, acham que o paraíso deve ser uma espécie de biblioteca. Sou dos que acariciam as capas como se fossem colos, as lombadas como se fossem coxas, sou dos que cheiram as páginas como se fossem nucas. E namoro a fonte, suspiro com a diagramação, busco com os dedos o acetinado, a gramatura – porque um livro é pra se possuir de corpo de alma, ele que é texto e textura.
Devia ser muito difícil viver, sem os livros, na Antiguidade. Vai ser muito sem graça viver sem eles daqui
pra frente.