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Lu Lacerda

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Jornalista apaixonada pelo Rio

Crônica, por Eduardo Affonso: Asma

Minhas avós eram de duas cores: a vó Preta, mãe da minha mãe, e a vó Rosa, mãe do meu pai

Por lu.lacerda
Atualizado em 27 jul 2025, 11h26 - Publicado em 27 jul 2025, 07h00
asma
 (IA/Divulgação)
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Minhas avós eram de duas cores: a vó Preta, mãe da minha mãe, e a vó Rosa, mãe do meu pai. Vó Preta por causa do tom escuro da pele – herdado por minha mãe, que foi a Tia Preta de todos os meus primos. Vó Rosa porque esse era seu nome de batismo, embora também fosse toda ela cor-de-rosa.

Da Vó Preta, as lembranças são poucas: pouca fala, um jeito áspero de se vestir, profundas rachaduras nas solas dos pés, que a faziam parecer ainda mais mineral. Me lembro dela menos que do seu entorno: a casa com chão de vermelhão (antes, de terra batida), telha vã (depois fizeram um forro de esteira, de onde sempre nevava um pozinho), canecas de ferro esmaltado, com a borda invariavelmente descascada. Tinha um pássaro preto de estimação, que vivia solto, e voejava pela cozinha, vindo pousar no seu dedo, no seu ombro. Falava com os mortos. Mais que isso: discutia com eles, expulsava-os de casa (invisíveis) a vassourada (vassoura de que ela mesma fazia, com galhos arrancados no mato).

Da Vó Rosa, as lembranças são muitas: moramos com ela toda a infância, até que meus pais tivessem uma casa própria. Era exigente com as empregadas, implacável com minha mãe, só ternura com os netos. Gostava de doces, de comidas gordurosas – que comia às escondidas (não sei de quem, porque todo mundo sabia). Vivia num mundo sobrenatural, povoado por “vento encanado”, “sereno”, “pé no chão frio”, “banho depois do almoço” e outras entidades malignas – todas mortais.

Suas frases favoritas eram “Deus te abençoe”, “não esquece um agasalho” e “leva um guarda-chuva” – usadas sem moderação, em qualquer ocasião, e sem que déssemos a menor bola. Vivia fechando janelas (“olha a corrente de ar!”), vigiando os pés descalços (“olha o estrepe”), intervindo nas eventuais surras (“o Eduardo não é jirau de pancada!”) e enchendo o prato de comida (o nosso e o dela).

Assim como eu, tinha asma. E a falta de ar nos unia. Não herdei dela o sobrenome – “Eduardo Raposo” me soa tão melhor… –, só o ritmo ansioso, ofegante, uma pressa sem sentido para as coisas mais miúdas (vício de quem acha que vai perder o fôlego no meio da tarefa).

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Para mim, asma era doença de criança – e minha avó padecer desse mal não estragava a teoria: ao contrário, confirmava a suspeita de que ela fosse uma menina precocemente envelhecida. Não era adulta, como os adultos, que sabiam de tudo. Tudo o que ela sabia era que sereno era um perigo, que não se podia sair do banho quente e pisar no cimento frio, nem espremer espinhas depois do almoço (já estávamos, então, na fase das espinhas) ou lavar o cabelo antes de dormir. Tudo – vento, sereno, cimento, espinha, cabelo molhado – nos lembrava do quanto éramos frágeis. E minha avó, com sua pele cor-de-rosa, sua cordilheira de varizes roxas, era a fragilidade em pessoa. Quando nasci, ela não tinha ainda 60 anos. E já era velhíssima, ancestral.

Me lembro dela agora porque nunca acreditei nas suas crendices: engolir caroço de jabuticaba entope o intestino, comer bolo quente dá dor de barriga, ler no escuro estraga a vista, a asma volta na velhice. E esta semana, depois de quase seis décadas, minha asma voltou.

Mas não era só na velhice que voltava? Ali quando começássemos a dizer “no meu tempo…” e a ter mais memórias do que planos?

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Por via das dúvidas, vou começar a evitar vento encanado e levar sempre um agasalho. Se a asma voltou, vai que volta também o sereno – aquele lindo e mortal sereno que havia no meu tempo, quando ainda eu tomava a bênção (Bença, vó Rosa! Bença, vó Preta!) e tinha mais planos que memórias.

Eduardo
(arquivo pessoal/Arquivo pessoal)
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