Crônica, por Eduardo Affonso: Anamnese
"Eu me identifico como alguém que nasceu, sei lá, na década de 70"

Nome: Eduardo Affonso
Data de nascimento: consta que seja 22/4/59, mas não consigo me ver como alguém dos anos 50: rockabilly, Marta Rocha, suicídio de Getúlio, inauguração da Dutra e eu? Sei não. Isso me faz entender as pessoas trans: eu me identifico como alguém que nasceu, sei lá, na década de 70. Se já existe “nome social” para quem não se conforma com o gênero designado no nascimento (consequentemente, com o nome imposto no registro civil), pleiteio a “data de nascimento social”. Botaí 22/4/79 – mantendo o signo de Touro, que é o que importa.
Naturalidade: nenhuma. Me sinto sem jeito em toda e qualquer situação. Gostava dos tempos da calça social, para poder enfiar as mãos nos bolsos e me fazer de descolado, mas agora nem isso. Fumar talvez me trouxesse aquele ar cruel de quem sabe o que quer – além de resolver o problema de pelo menos uma das mãos (a outra teria de ir pro bolso da calça social, não tem jeito).
Filiação: jamais me filiei a partido nenhum, a nenhuma corrente filosófica. Se escola literária valesse, eu teria me filiado ao Barroco. Depois descobri o Simbolismo, e troquei Gregório de Matos por Alphonsus de Guimaraens. Já destroquei, é bom consignar aqui (ah, as escolhas insensatas que a gente faz aos 15 anos de idade…).
Sexo: tenho uma vaga lembrança. Nunca chegou a ser como eu fantasiava (a coluna vertebral com duas hérnias de disco tem limitações que a imaginação desconhece), mas foram poucas as vezes em que deu vontade de registrar no “Reclame aqui”. Nesses casos, achei melhor relevar e apenas não dar uma segunda chance. Ou não passar da terceira. Na quarta, se não houvesse alternativa, invocar a falta de jeito com as mãos (ou as hérnias de disco) – e pular fora tão logo o quinto equívoco se consumasse.
Orientação sexual: desnorteado. Nasci numa época (1959 ou 1979, tanto faz) em que havia dois destinos homônimos chamados Desejo. A estrada para um deles era de asfalto, bem sinalizada, com acostamento e postos 24 horas, com lojas de conveniência e tudo. A do outra era de cascalho, cheia de calombos, com poeira no tempo de seca e lama no de chuva, e ai se acabasse a gasolina. Mas cada um sabia a qual Desejo queria chegar, e a que custo – e não eram poucos os que escolhiam pegar a estrada boa, mesmo que levasse ao Desejo errado. Hoje estão catalogados 729 destinos chamados Desejo, aos quais se chega por estradas que se bifurcam, se cruzam, se sobrepõem; a sinalização é péssima e cada uma tem um pedágio próprio. Se frequentasse esses podiquestes aos quais as pessoas vão para o ritual da evasão de privacidade e invenção de uma orientação sexual praticamente exclusiva, eu me declararia bípede, eucarionte, multicelular, aeróbico e com capacidade de homeostase. O problema era deixar quem me entrevistasse de queixo caído e água na boca. Melhor não.
Estado civil: pai de pet.
Profissão: jura que quer mesmo saber? Fui arquiteto, bancário, professor. Queria ter sido diplomata, sociólogo, pedagogo, astronauta e verdureiro (não necessariamente nessa ordem cronológica: o verdureiro é da primeira infância, depois Yuri Gagarin me fez querer ver a Terra azul etc.). Escrevo desde os seis anos de idade, mas só aos 60 comecei a levar a coisa a sério – e a viver disso. Ainda sonho (literal e metaforicamente) ter um divã, uma luminária ardecô, um quadro abstrato na parede, uma estante com Freud, Laplanche, Pellegrino, Calligaris, Daudt, Garcia-Roza e o analista de Bagé, e exercitar a atenção flutuante, o tempo lógico e a consulta sem recibo.
Alergias: barulho, vizinho, pernilongo, pimentão, funk, falta de educação, atraso e corticoide.
Atividade física: só quando desembarco no Galeão e tenho de andar os 15 km entre o finger e aquela plataforma improvisada do Uber.
Doenças prévias: asmático na infância, otimista na adolescência, assalariado na vida adulta, e escritor de uns tempos pra cá.
Queixas: dói tudo; o Botafogo só decepciona; parece que, se o Putin não conseguir acabar com o planeta, o Trump assume esse encargo; passei um fim de semana em Brasília e as minhas vias aéreas estão mais secas que brevidade feita por vó; e não durmo direito há uns 66 anos.
Tem cura, doutor?
