Crônica, por Eduardo Affonso: A linguagem hortifrúti
A moda lançada na Espanha: no supermercado, colocar no carrinho um abacaxi de cabeça para baixo quer dizer “Estou na pista”.
No século XIX, cultivava-se a linguagem das flores: uma rosa branca e uma vermelha indicavam fogo no coração, sofrimentos de amor. Um ramo de alecrim dizia “Quero falar-te”. O botão de cravo branco insistia: “Espero resposta”. Uma hortênsia punha por terra toda esperança: “Não me interessais”.
Quem acha que o romantismo morreu ali, junto com os acendedores de lampiões e a segunda pessoa do plural, está enganado. Assim como se engana quem pensa que o ser humano perdeu, no século do sexo explícito disponível no celular, o gosto pela sutileza. Basta ver a moda lançada na Espanha: no supermercado, colocar no carrinho um abacaxi de cabeça para baixo quer dizer “Estou na pista”.
Ok, não é tão elaborado quanto ofertar uma glicínia (“Vossa amizade me é doce e agradável”) ou exibir um malmequer no decote (“Sofro cruéis tormentos”). Mas fica um degrau acima de clicar um coraçãozinho na foto do Instagram ou dar match no Tinder.
O abacaxi não está sozinho nesse flerte em código: dois pimentões significam que você é comprometido/a/e, mas está pronto/a/e para pular a cerca.
Imagino que a coisa não deva ficar por aí e já me vejo no setor de hortifrúti enchendo o carrinho não de produtos saudáveis, mas de segundas intenções. O que torna fundamental a organização de um dicionário, a fim de evitar acusações de assédio (“Como ousa circular pelo mercado com esse rabanete à vista de todo mundo? Vou chamar o gerente!”) e mal-entendidos (“Não é rabanete, senhorita: é um nabo!”; “Ah, desculpe, o senhor também é muito simpático…”).
Ofereço aqui minha modesta contribuição:
Abacaxi de cabeça para baixo: “Estou na pista”;
Abacaxi de cabeça para cima: “Hmm, acho que vou fazer salada de frutas”;
Abacaxi de frente: “Busco relacionamento estável”;
Abacaxi de costas: “Sem compromisso emocional, só financeiro”;
Abacaxi de lado: “O Pedro Henrique chega às 22h. Acho que dá tempo”;
Maço de espinafre: “Pegada forte”;
Maço de coentro: “Venha por sua conta e risco, e depois não diga que não avisei”;
Um pitaya: “Não se deixe levar pelas aparências”;
Três pitayas: “Me engana que eu gosto”;
Réstia de alho: “Quero beijar muito”;
Abóbora em pedaços: “Bora ver Netflix?”;
Abóbora inteira: “Nem vem de garfo que hoje é dia de sopa”;
Melão de barriga pra cima: “Hétero, porém de Aquário com Lua em Peixes”;
Melancia de bruços: “Escorpião com ascendente em Escorpião e um escorpião tatuado na virilha. Vai encarar?”.
O esquema pode ser expandido para outros setores:
Comfort Lavanda: “Só depois de casar – e mesmo assim um sábado sim, outro não”;
Picanha (100 gramas): “Avante, companheiros! A luta continua!”;
Azeite extra-virgem: “A fim um sugar daddy, princesa?”
E se te olharem de um modo enigmático junto à gôndola de hidropônicos ou um homem que você nunca viu te oferecer flores (não importa se rosa, cravo, hortênsia ou glicínia), não se assuste: é essa batata doce na diagonal, sobre um leito de rúcula. Quem há de resistir a uma proposta dessas?