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Fernanda Torres

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Veredas

Grande Sertão surgiu como um oásis em meio à terra arrasada

Por Fernanda Torres
Atualizado em 6 abr 2018, 10h30 - Publicado em 6 abr 2018, 10h30
 (Isabelle Barreto/Divulgação)
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Domingo à noite no Rio de Janeiro. Pego um táxi com meu filho mais velho para ir assistir à versão de Bia Lessa do Grande Sertão Veredas, no Centro Cultural Banco do Brasil.

Assim que saímos, um apagão deixou às escuras meia Lagoa Rodrigo de Freitas. Seguimos pelo breu das ruas até chegar ao Aterro, o parque idealizado para uma cidade que não existe mais.

Descemos numa Primeiro de Março vazia e penumbrosa. Olhei para o rebento e me veio uma angústia terrível de vê-lo crescer na capital fantasma.

Um pouco mais velha do que ele, fiz Orlando, de Virginia Woolf, também dirigido por Bia Lessa, no CCBB. Todo o entorno do edifício estava em plena revitalização na época, com a Casa França-Brasil e o Centro Cultural dos Correios a todo o vapor.

Nada daquilo existe mais. Descemos na esquina da Candelá­ria, palco de uma chacina de meninos de rua, mas até os que sobreviveram ao massacre abandonaram a praça. Caminhamos com pressa até o teatro, onde oitenta espectadores lotavam a sessão.

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Grande Sertão surgiu como um oásis em meio à terra arrasada. Existem muitas razões para apreciar a encenação, em especial o excelente achado dos fones, que fazem as palavras ressoar na cabeça numa experiência pessoal, íntima, semelhante à que se tem ao ler o livro.

Mas o grande milagre da montagem é mesmo o Riobaldo de Caio Blat. Caio se apodera da poesia imensa, intransponível do Guimarães, e a oferece como uma confissão clara, cristalina.

Olhei para o meu filho e desejei que ele, nesse Liso do Sussuarão em que se transformou a cidade onde eu o pari, desejei que ele, assim como Riobaldo e Blat, desse conta de desabrochar numa quebrada sem futuro.

“O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejos” está à solta, na rua, no meio do redemoinho com os fuzis e as granadas em riste. O diabo na rua, no meio do redemoinho, é o motor da cizânia, do ódio, da estupidez partidária, da cegueira engajada, da corrupção sem cura; o rei dessa vereda de Hermógenes.

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Voltei com o meu Riobaldo para pernoitar na trincheira que chamamos de lar. No caminho, o medo e a desolação da cidade em que nasci.

“O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais.”

Se a arte salva e consola, estou participando de um movimento para trazer a remontagem do extraordinário O Rei da Vela, com direção de José Celso Martinez Corrêa, à Cidade das Artes, agora em abril. Eu mandei meu filho a São Paulo para assistir à peça, de tão impressionada que fiquei com Oswald e o Oficina. No fim, meu guri me ligou aos gritos agradecendo. É imperdível.

Os ingressos das poucas apresentações já estão à venda, corram. É de lavar a alma de tanta inteligência, potência, humor e beleza. Arte, como poucas vezes vi, e como não se vê mais.

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