O primeiro dia de 2018 surgiu com aquele sol que já amanhece ao meio-dia. Calor de rachar, eu me mandei para a Praia da Macumba na esperança de encontrar uma vaga no recanto afastado. Ledo engano.
Dei de cara com três caixas de som gigantescas, resquício do réveillon de uma turma animada, que ainda reverberavam um proibidão de responsa em plena calçada. Flanelinhas trôpegos fingiam dar ordem ao caos, toureando com os parcos bêbados que se divertiam sozinhos, enquanto o resto da comunidade rezava por um coma alcoólico que desse fim ao baticum da passagem.
Um infeliz estacionou com a roda bem em cima do cabo de som. Um dos bebuns não se fez de rogado, catou o microfone e anunciou em direção à areia: “SE O DONO DO CORSA PLACA TAL NÃO QUISER TER A LATARIA ARRANHADA DE CABO A RABO, É MELHOR APARECER PARA TIRAR O CARRO. SÓ PARA AVISAR: EU ESTOU ARMADO!”. Fino…
Abandonamos o estacionamento o mais depressa possível e adentramos a faixa de areia.
Acomodados numa clareira exígua entre barracas, fomos recebidos pelo vendedor de sorvete que encarava o batente no feriado lotado. Exemplo da mais alta casta da malandragem carioca, ele esgotou o estoque com um bordão: “PICOLÉ não lembro o nome, DOS PIORES, O MELHOR!”.
Foi esse o Rio que deixei para trás, antes de pegar um avião em direção à Europa cinzenta. O Rio e seus mil tons de verde, bafo quente e céu azul. O Rio e sua tragicomédia louca, espontânea e imutável.
O frio, para quem está habituado às altas temperaturas, é um convite à introspecção. É algo bom de sentir, esse hiato, esse recolhimento ausente. Tenho visto o noticiário de vez em quando, à noite, nas raras vezes em que ligo a TV. O barulho do mundo lembra o da Praia da Macumba, aquela mistura de beleza e desespero, de comoção com a vida e medo do porvir.
Francesas maduras veem moralismo no #MeToo das americanas que vestiram luto no Globo de Ouro; Oprah faz discurso de candidata; o Havaí panica diante de uma falsa ameaça de míssil; e o Brasil é rebaixado pela Standard & Poor’s. Mar de lama na Califórnia, neve no Saara e avalanches nos Alpes. Desliga, desliga, me deixa quieta que eu quero esquecer.
Seduzida pela paz da indiferença, recebo, pelo celular, o recado de Vera Cordeiro, médica fundadora do Saúde Criança.
Essa rede assistencial que, desde 1991, não só cuida dos doentes que batem às portas dos hospitais públicos como organiza a vida das famílias em seu redor; essa instituição com prêmios de excelência internacionais que já atendeu milhares de pessoas e cujo método pioneiro pode ser replicado em outros rincões do país; essa raridade, capaz de fazer diferença na miséria pátria, fechou o ano com um rombo de quase meio milhão de reais e precisou demitir parte da equipe.
É de sentar na calçada e chorar.
Longe do Rio, abandono o egoísmo autocontemplativo, lembro do último dia que passei na minha terra e escrevo, sem rodeios, para pedir ajuda ao Saúde Criança.