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Por Fabiano M. Serfaty, clínico-geral e endocrinologista, MD, MSc e PhD.
Saúde, Prevenção, Tratamento, Qualidade de vida, Bem-estar, Tecnologia, Inovação médica e inteligência artificial com base em evidências científicas.
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Psicodélicos: conheça os efeitos e os riscos do uso médico

Os psicodélicos, como o LSD, a psilocibina e a MDMA, agora estão sendo estudados por seus potenciais usos terapêuticos no tratamento de doenças mentais

Por Dr. Fabiano M. Serfaty e Dr. Marcelo Allevato
Atualizado em 29 ago 2023, 22h13 - Publicado em 23 ago 2023, 21h52

No âmbito da medicina contemporânea, uma revolução silenciosa está ocorrendo à medida que os psicodélicos emergem como candidatos promissores no tratamento de doenças mentais debilitantes. Os psicodélicos, substâncias conhecidas por suas propriedades que alteram a percepção e a consciência, estão ganhando crescente atenção no campo da psiquiatria. Anteriormente associados à contracultura, os psicodélicos como o LSD, psilocibina e MDMA estão sendo investigados por seus potenciais usos terapêuticos no âmbito das doenças mentais. As pesquisas atuais buscam compreender como estas substâncias interagem com os sistemas neurológicos, potencialmente afetando os padrões de pensamento, emoções e percepções dos indivíduos. Embora haja indícios preliminares de benefícios no tratamento de condições como depressão, ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático e dependências, as investigações ainda estão em estágios iniciais, enfrentando desafios regulatórios, éticos e científicos. À medida que a pesquisa avança, a relação entre psicodélicos e psiquiatria está sendo redefinida, levantando questões sobre o potencial de uma nova abordagem terapêutica na saúde mental. Neste contexto, para debater este tema, baseado nas evidências científicas mais atuais, convido o Dr. Marcelo Allevato, médico Psiquiatra e Mestre em Psiquiatria pelo IPUB-UFRJ, que vem dedicando à investigação ao estudo das potenciais aplicações terapêuticas dos psicodélicos na Psiquiatria.

Dr. Fabiano M. Serfaty: Quais são as perspectivas da utilização dos psicodélicos na medicina?

Dr. Marcelo Allevato: A proibição da utilização dos psicodélicos, no início da década de setenta do século passado, teve como consequência a virtual suspensão de todos os estudos de desenvolvimento dessas substâncias com fins terapêuticos, pela impossibilidade de realização de estudos clínicos com substâncias proibidas. Nas últimas décadas essas pesquisas foram gradualmente retomadas, e o interesse pelo desenvolvimento de tais substâncias como intervenções médicas tem crescido de forma exponencial, especialmente na área de transtornos mentais.

Dr. Fabiano M. Serfaty: Quais são os diferentes tipos de psicodélicos?

Dr. Marcelo Allevato: Os psicodélicos clássicos são os alucinógenos como o LSD, a Psilocibina e a Dimetiltriptamina (DMT), componente ativo da Ayahuasca. Outras substâncias comumente incluídas nessa denominação de psicodélicos incluem os anestésicos dissociativos, como a cetamina e a escetamina, além de derivados anfetamínicos, como a metilenodioximetanfetamina (MDMA). É importante lembrar que outras substâncias de diversas origens e com propriedades psicodélicas também existem, como por exemplo, a ibogaína, dentre outros.

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Dr. Fabiano M. Serfaty: Quais são os efeitos dos psicodélicos no cérebro?

Dr. Marcelo Allevato: Os psicodélicos clássicos atuam sobre um subtipo de receptor do neurotransmissor serotonina, chamado 5HT2a, e influenciam a neurotransmissão glutamatérgica de forma indireta. Dessa forma, alteram a atividade de regiões cerebrais distintas e também o padrão de conexão entre elas. Por sua vez, os anestésicos dissociativos atuam sobre um receptor do neurotransmissor glutamato denominado NMDA, e também afetam outros sistemas de neurotransmissão envolvidos em alterações do comportamento e da cognição, como ocorre na Depressão. Já os derivados anfetamínicos aumentam a liberação pré-sináptica de monoaminas, especialmente dopamina e serotonina, e causam alterações do humor e do comportamento.

Dr. Fabiano M. Serfaty: Quais são os potenciais benefícios médicos dos psicodélicos?

Dr. Marcelo Allevato: Além dos efeitos sobre a neurotransmissão, os psicodélicos atuam sobre as redes neurais, e acredita-se que um de seus mecanismos principais seja a redução da conectividade entre as regiões cerebrais componentes da chamada Rede Neural Padrão, ou Default Mode Network (DMN), o que levaria à reorganização de seu funcionamento. A DMN é envolvida em funções como pensamento autorreferencial e memória autobiográfica. O relaxamento dessas conexões proporcionaria uma possível reconsolidação de memórias traumáticas de uma forma menos negativa, potencialmente útil no transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e melhora ou mesmo abolição de pensamentos negativos recorrentes, comumente chamados de ruminações em quadros de Transtorno Depressivo Maior (TDM), especialmente os refratários aos tratamentos existentes.

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Dr. Fabiano M. Serfaty: Quais são os riscos associados ao uso de psicodélicos?

Dr. Marcelo Allevato: Os riscos inerentes a seus efeitos adversos como substâncias, como por exemplo de náuseas, cefaleia e exacerbação da ansiedade são efeitos relativamente comuns. Já a ocorrência de estados dissociativos, alucinações, delírios e outras manifestações de natureza psicótica, cuja incidência difere entre os diversos compostos, pode ser considerada, por alguns, “parte da experiência”. Geralmente esses efeitos adversos não são registrados, até porque a maioria da utilização não ocorre em ambientes controlados e não há farmacovigilância. Outros efeitos adversos como, por exemplo, indução de valvulopatias e mesmo a ocorrência de arritmias cardíacas por ativação de receptores de serotonina 5HT2b tem sido relatada com o uso de psicodélicos serotoninérgicos. É relevante destacar que, em um estudo preliminar para a avaliação da efetividade da psilocibina, a incidência de ideação suicida foi superior à observada no grupo controle. Um risco adicional a ser considerado é a possibilidade de ocorrência de abuso contra os pacientes por parte dos chamados facilitadores ou mesmo de terapeutas, o que tem levado à adoção da supervisão em duplas de gêneros diferentes.

Dr. Fabiano M. Serfaty: Quais são as perspectivas futuras para o uso de psicodélicos na medicina?

Dr. Marcelo Allevato: A escetamina está aprovada, inclusive no Brasil, para o tratamento da Depressão Resistente ao Tratamento (DRT). Todas as demais substâncias ainda não possuem uso autorizado formalmente. As indicações em desenvolvimento no momento, na área da psiquiatria, são o TEPT e o TDM, especialmente em suas formas resistentes aos tratamentos atuais. Na Austrália, há uma autorização de uso, desde que sejam atendidos requisitos quanto à habilitação dos médicos e da gravidade do quadro clínico, para o uso do MDMA para TEPT e da psilocibina no TDM, ambos refratários ao tratamento. No estado norte-americano do Oregon, o uso é liberado sem indicação médica, desde que acompanhado por facilitador certificado, sem formação específica na área da saúde. É provável que o Colorado adote medida semelhante. É importante ressaltar que tais medidas não caracterizam intervenção médica e foram adotadas por decisão plebiscitária. Há, inclusive, um movimento de parte da população desses estados para sua reavaliação. As perspectivas futuras podem ser promissoras, desde que haja rigor metodológico na produção de evidências, como será comentado adiante.

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Dr. Fabiano M. Serfaty: Quais são as evidências científicas mais recentes que sustentam o uso de psicodélicos na medicina e como essas substâncias têm sido aplicadas em tratamentos psiquiátricos?

Dr. Marcelo Allevato: Com exceção da escetamina, aprovada formalmente para tratamento da Depressão Resistente ao Tratamento (DRT), todos os outros compostos citados ainda estão em processo de produção de evidências, se tanto. A produção de evidências científicas para tais intervenções apresenta dificuldades metodológicas significativas, como por exemplo a dificuldade ou mesmo impossibilidade de cegamento dos avaliadores ou da adoção de um grupo placebo em muitas circunstâncias, até porque algumas dessas substâncias são testadas em associação com psicoterapias de diversas modalidades, o que torna difícil isolar seus efeitos. Mesmo com tais dificuldades, algumas empresas desenvolvem programas, inclusive com a prioridade de avaliação e orientação (fast track) e situação de terapia inovadora (breakthrough therapy) da Administração de Alimentos e Medicamentos (Food and Drug Administration – FDA) norte-americana, que não devem ser confundidas com aprovação, como alguns textos enganosamente podem sugerir. Há muita literatura produzida e em produção, mas ainda há carência de evidências clínicas produzidas de acordo com os padrões exigidos para a aprovação de intervenções médicas.

Dr. Fabiano M. Serfaty: Quais são os benefícios potenciais do uso de psicodélicos no tratamento de doenças mentais, como depressão, ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático?

Dr. Marcelo Allevato: Algumas teorias têm sido propostas para explicar os mecanismos pelos quais esses benefícios são obtidos, como as hipóteses do Cérebro Entrópico (Entropic Brain) e das Crenças Relaxadas Sob os Psicodélicos (Relaxed Beliefs Under Psychedelics – REBUS), dentre outras. De forma resumida, esses modelos propõem que o uso dos psicodélicos associados à psicoterapia pode reduzir a atividade da Rede Neural Padrão ou Default Mode Network (DMN) e o controle das regiões cerebrais filogeneticamente mais modernas que é exercido sobre as regiões filogeneticamente mais antigas, evitando reverberações de conteúdos geradores de ansiedade e tristeza, aos quais citados como ruminações anteriormente. Além desses processos relativos a eventos passados, há descrições da adoção de uma postura menos ansiosa e mais afetiva em todas as esferas da vida de parte dos pacientes, descrita por vezes como uma mudança persistente e positiva de personalidade. Esse efeito empático faz com que algumas dessas substâncias sejam chamadas de empatógenas, ou geradoras de empatia. Outro efeito descrito é a propensão a experiências místicas, chamada de efeito enteogênico, que pode ser positiva para muitos pacientes. É importante lembrar que as experiências não são positivas para todos os pacientes, e alguns podem descrever estados psicóticos aterradores como efeito colateral, as chamadas “más viagens” ou bad trips.

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Dr. Fabiano M. Serfaty: Como os psicodélicos estão sendo integrados ao contexto da medicina moderna, e quais são os desafios enfrentados para sua adoção mais ampla em práticas clínicas?

Dr. Marcelo Allevato: A integração ainda é embrionária fora do ambiente de pesquisas clínicas e do uso religioso, como ocorre com a Ayahuasca, que é permitida por ser parte de manifestação religiosa. Com a exceção da já citada escetamina, não há autorização da ANVISA para uso em outros contextos, o que limita seu uso em nosso meio. A tendência é que a geração futura de evidências mais consistentes permita uma avaliação mais abrangente e pragmática do seu potencial terapêutico e de suas limitações, inclusive em situações como uso paliativo e substituição de opioides.

Profissional convidado:

Dr. Marcelo Allevato;

Médico Psiquiatra;

Mestre em Ciências da Saúde, area de Concentração Psiquiatria, pelo IPUB-UFRJ;

Membro Titular Senior da Associação Brasileira de Psiquiatria.

Referências:

  1. McClure-Begley, T.D., Roth, B.L. The promises and perils of psychedelic pharmacology for psychiatry. Nat Rev Drug Discov 21, 463–473 (2022).
  2. De Gregorio D, Aguilar-Valles A, Preller KH, Heifets BD, Hibicke M, Mitchell J, Gobbi G. Hallucinogens in Mental Health: Preclinical and Clinical Studies on LSD, Psilocybin, MDMA, and Ketamine. The Journal of Neuroscience, February 3, 2021 • 41(5):891–900.
  3. Rosenblat JD, Husain MI, Lee Y, McIntyre RS, Mansur RB, Castle D, Offman H, Parik SV, Frey BN, Schaffer A, Greenway KT, Garel N, Beaulieu S, Kennedy SH, Lam RW, Milev R, Ravindran AV, Tourjman V, Van Ameringen M, Yatham LM, Taylor V The Canadian Network for Mood and Anxiety Treatments (CANMAT) Task Force Report: Serotonergic Psychedelic Treatments for Major Depressive Disorder. The Canadian Journal of Psychiatry / La Revue Canadienne de Psychiatrie 2023, Vol. 68(1) 5-21.

 

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