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Por Alexandre Carauta, jornalista e professor da PUC-Rio
Pelos caminhos entre esporte, bem-estar e cidadania
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O garoto, o ídolo e a hora da verdade humanitária

Consagrado pelo Direito universal, compromisso com a saúde coletiva extrapola crenças, estilos, ambições individuais

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Atualizado em 19 jan 2022, 16h11 - Publicado em 19 jan 2022, 00h08

Anos 70. O garoto toca um terror. Tagarela, zoa os colegas, inferniza a sobriedade reinante. Tenta apressar as duas horas de catecismo, toda sexta, na escola.

A gota d’água seria o chiclete no assento vizinho. Nem a paciência divina do professor evitaria o que hoje chamamos de cancelamento.

“Infelizmente teremos de suspendê-lo. Ainda não está preparado”, diz o catequista à mãe chamada ao colégio. Fala mansa, lábia de advogada, a senhora consegue uma clemência provisória. O menino ganha um mês para se enquadrar, mostrar-se pronto à primeira comunhão.

Os trinta dias seguem milagrosamente mansos. A bronca dos pais adianta. Periga expirar quando avisam: o veredito sairá após a confraternização da catequese. Se tudo correr bem, o menino continuará com a turma rumo à eucaristia.

A garotada se encontra num sábado perfeito. Céu de brigadeiro, brisa de primavera, piquenique à sombra da mangueira, um jardim de brincadeiras. Sob medida para as crianças interagirem fora das liturgias pedagógicas.

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Um grupo de desavisados ganha de súbito o campinho. Tinham combinado jogar bola ali. “Ei, nada disso, esse espaço está reservado”, veta um dos alunos do catecismo, à beira do par-ou-ímpar para a escolha dos times. “Mas a gente joga futebol aqui todo sábado”, argumenta o suposto invasor.

O impasse perdura até o garoto simplificar: “Por que não jogamos juntos? Se fizermos partidas de 20 minutos, todo mundo joga. Há tempo de sobra”. Com certa relutância, a proposta vinga. Desemboca em novas amizades.

Meio-dia, o piquenique chama. Quatro crianças descobrem-se sem lanche. O garoto não hesita. Divide os sanduíches, empadinhas e bolos preparados pela vó. “Há comida pra todos”, convida.

A tarde avança, meninas planejam um queimado. Esbarram no preconceito para formar as equipes. “Não levem a mal, mas é jogo de mulher”, argumenta um. “É chato”, desdenha outro. “Bobagem. Bora brincar”, convoca o tal garoto.

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Lambuzado de pequenas grandes alegrias, o sábado termina numa revelação. Os catequistas haviam arquitetado os contratempos – na pelada, no piquenique, no queimado. A inclinação para resolvê-los mediria a correspondência prática dos ensinamentos cristãos.

Só o menino gabarita os testes. Logo ele, o terror da catequese. Na hora da verdade, o coração fraterno pulveriza as diabruras.

O episódio lembra um tanto a folclórica reprovação de Garrincha por um comitê encarregado de avaliar o ajuste dos pré-convocados para a Copa de 58 a padrões atléticos. Desassossego dos manuais biomecânicos, o craque estaria desenganado.

Para frear o absurdo, Nilton Santos e outros colegas de seleção apelam ao óbvio: Mané voa sobre a matemática, a física, a biomecânica. Suas asas o fazem inalcançável. Pelos adversários, pelos rigores táticos, pelas leis de Newton. Nenhum escrete poderia prescindir daquela alegre erupção de drible, gol, irreverência.

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Sempre haverá um menino travesso ou um anjo torto a descascar a realidade, e revolver o sentido das coisas. Felizmente.

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A historinha do guri “despreparado” sublinha lição ancestral: fraternidade extrapola crenças, estatutos, estilos. Aplicá-la de forma indistinta constitui um desafio da condição humana.

Desafio ao qual nos confronta intensamente a pandemia. Reflete-se nos boicotes à vacinação e na desigualdade de acesso aos imunizantes.

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Ponte para o fim do pesadelo, a vacina atesta empatia. A opção de recusá-la se dissolve na responsabilidade com a saúde comunitária.

Autoridades, personalidades, ídolos carregam o dever humanitário de incentivar a vacinação e contribuir para democratizá-la. Com palavras e, principalmente, gestos exemplares.

Casos como o do tenista Djokovic trilham a contramão. Fonte de sobressaltos diplomáticos, a requerida dispensa do imunizante no Aberto da Austrália sinaliza certa indiferença com o bem-comum e com a própria influência de ídolo global.

Camufladas de liberdade individual, iniciativas do tipo desapontam a hora da verdade. Naturalizam privilégios. Turvam a urgência da imunização irrestrita.

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Às diretrizes científicas, soma-se o compromisso com o bem-estar coletivo. Está formalizado na Declaração dos Direitos Humanos, de 1948, e nas Constituições dos países democráticos. Independe de pendores político-partidários, religiosos, ideológicos, econômicos.

Assegurá-lo é tarefa não só do poder público, como determinam as matrizes legais mundo afora, mas de todos. Na dúvida, basta uma breve consulta aos artigos 25º e 29º da Declaração dos Direitos Humanos:

Toda pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar (…)”.

“O indivíduo tem deveres para com a comunidade, fora da qual não é possível o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade. No exercício deste direito e no gozo destas liberdades, ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades do outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática”.

Nossa Constituição reforça: “Saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas”. Sustenta-se com a “participação da comunidade” (artigos 196 e 198).

Os cuidados sanitários e a vacina evocam uma adesão conjunta. Impõem-se às individualidades. Assim clamam o Direito universal, os princípios humanitários, a sensatez. Assim praticam, com naturalidade inspiradora, os corações fraternos.

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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva.

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