Por que jogos sob calor intenso devem rumar para a extinção
Exposta a temperaturas extremas, prática esportiva desperta o risco de hipertermia, o que pode causar desidratação, náusea, câimbra, convulsão
A antiga marchinha batuca onipresente. O calor é tanto que vendedor de queijo coalho dispensa o forno a tiracolo.
Uns refugiam-se nos banhos de mar noturno, no velho banho de mangueira, nas piscinas festivas. Outros entregam-se ao chamado da água de coco, do picolé, do chope, caçam o ar-condicionado de plantão, qualquer alívio gelado ao alcance da rotina e do bolso.
As prosaicas receitas para suportar o forno ligado já às seis da matina não dissimulam o tamanho da barra. A sensação de 50 graus escancara a urgência de cumprirmos todos – cidadãos, governos, empresas – os compromissos firmados e atualizados desde o Acordo de Paris, em 2015. Os impactos da pandemia climática tornam-se, a cada ano, mais drásticos, mais difíceis de contornar.
A inadiável revisão de princípios, processos e hábitos estende-se a todos os capilares sociais, econômicos, políticos. Do agronegócio e da indústria à proteção florestal, da matriz energética à orquestração urbana. O esporte não é exceção.
O calor extremo troca os benefícios da prática esportiva pelo fantasma da hipertermia. A elevação prolongada da temperatura corporal desencadeia distúrbios metabólicos, cardiovasculares, neurológicos, hepáticos, renais. Causam desde desidratação, náusea, câimbra até desmaio, convulsão e morte.
Tais efeitos são detalhados em pesquisas como “Riscos associados à prática de esforço em condições de calor extremas” e “Calor, exercício físico e hipertermia: epidemiologia, etiopatogenia, complicações, fatores de risco, intervenções e prevenção”. As ameaças não poupam sequer atletas de ponta.
Condicionamentos apurados melhoram a adaptação a circunstâncias adversas, ajudam a superá-las muitas vezes. Mas não eliminam os perigos alertados pela comunidade médica. Seria impossível descartá-los, somado o calor intenso com o desafio aos limites do organismo.
As evidências científicas aguçadas pelo aquecimento atmosférico parecem insuficientes para banir disputas às três ou às quatro da tarde em pleno janeiro carioca, quando a sensação térmica costuma superar 40 graus. No subúrbio, longe da brisa marítima, já beirou os 60.
A falta de refletores em estádios modestos e a grana substantiva da transmissão audiovisual não justificam partidas num horário em que os gramados, diria Luiz Gonzaga, ardem igual fogueira de São João. A integridade física e mental implica cuidados mais previdentes do que pausas para hidratação.
Caso a responsabilidade com a vida não vença a insistência na exposição ao calor severo, pode-se apelar à lógica comercial. Sob um ambiente abrasivo, mesmo jogadores profissionais perdem rendimento: o espetáculo murcha, fica menos atrativo ao consumo.
Fora a prioritária precaução com a saúde, o empenho em garantir, aos astros, condições de trabalho ideais nada tem de facultativo. É indispensável à dignidade profissional, à qualificação do entretenimento, à satisfação do espectador, à cartilha socioambiental em que ora se apoiam as reputações corporativas.
O pragmático mandamento, crucial também ao lucro, segue fielmente aplicado nas principais competições do mundo. Não se nota apreço semelhante num campeonato estadual que, ao contrário dos termômetros, progressivamente esfria.
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Alexandre Carauta é jornalista e professor da PUC-Rio, integrante do corpo docente da pós-graduação em Direito Desportivo da PUC-Rio. Doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.