O Maraca é nosso, multicolorido como o carnaval
Valorizar a vocação pluralista, eternizada nas tardes de domingo, é tão importante quanto incrementar o repertório de serviços e atrações na órbita do jogo
O que será do Maraca? A incerteza assombra o cartão-postal por quase uma década, desde que desacertos políticos abortaram os planos de torná-lo um complexo comercial. O novo edital de concessão, esperado até junho, reacende a esperança de horizontes menos claudicantes.
Inquilina há quatro anos, a dupla Fla-Flu esboça um favoritismo oficioso. Concorre com os milhões aportados pela 777 Partners na recém-criada Sociedade Anônima vascaína. Sem subestimar o peso capitalista na licitação, os concorrentes têm de escalar inteligência e sensibilidade gerenciais à altura do cacife histórico, simbólico e sociocultural que faz do Maracanã uma Capela Sistina da bola.
A tarefa envolve uma complexidade de competências e avanços. Da redução do custo operacional próximo ao proibitivo à ampliação das receitas, com o incremento de produtos, serviços, conveniências que potencializem a experiência dos espectadores-torcedores.
O desafio parte de duas recalibragens culturais. A primeira: abolir a confusão recorrente entre tradição popular e descuido com conforto, higiene, excelência.
A segunda: harmonizar velhas e novas liturgias que doutrinam o torcer. Misturam-se assimétricas nas arquibancadas contemporâneas. Não raramente se tensionam, ao se julgarem detentoras da forma legítima de acompanhar a partida e reverenciar o time do peito.
Práticas digitais, onipresentes na sociedade do algoritmo, juntam-se a arroubos tribais inerentes às, como diz o antropólogo Édison Gastaldo, relações jocosas do futebol. Uma aquarela fiel aos tempos deslizantes. Para contemplá-la, é preciso discernir as camadas de público. Elas resistem, até certo ponto, à pasteurização dos estádios elitizados.
Seria ilusório um antagonismo entre a turma interessada em ver o jogo panoramicamente, acostumada a se levantar só em lances perigosos, e o pessoal louco para participar do espetáculo, mergulhar na atmosfera dionisíaca, cantar e pular como quem corteja um trio elétrico.
Esses comportamentos mostram-se menos conflitantes do que complementares. Várias vezes alternam-se ou sobrepõem-se ao longo da partida, em graduações distintas.
Configuram uma etiqueta emergente. Convenções seculares, avalistas de um torcedor raiz, aglutinam-se a condutas que, influenciadas pela cibercultura, esgarçam as filiações ao universo futebolístico. Eis a matriz um torcedor hipermoderno: globalizado, híbrido, formado também nos aplicativos, videogames, canais de streaming.
Mapeada na tese “O cibertorcedor entra em campo: como a troca do radinho pelo celular mudou o consumo do futebol” (PUC-Rio, 2019), a etiqueta em construção insinua-se sincrética. Agrega as provocações tradicionais, as vaias impiedosas, os louvores coreografados, as mandingas, o abraço no desconhecido ao lado, às dinâmicas online que transbordam o enredo para uma infinidade de telas.
Compreender a aglutinação em curso revela-se indispensável à gestão do Maracanã. Igualmente primordial é conciliar as ambições econômicas com a genética pluralista do patrimônio universal.
Alma carioca, o Maraca nasceu para representar o país idealizado: moderno, inventivo, grandioso. Cresceu vitaminado por charangas, bandeiras, coros irreverentes. Virou apoteose, refúgio, catarse.
Suas tardes de domingo expandem os dilúvios cromáticos e sonoros arquitetados por Mário Filho nos anos 50. Mesmo quando vivenciadas pelo rádio, pela tevê, pela internet, inscrevem-se na eternidade. Habitam o imaginário coletivo.
O Maraca oxigena a mitologia transversal do futebol. Sua pluralidade amazônica e seus vastos personagens germinam porções de paraíso, tragédias gregas, encontros com o imponderável, a infância, a democracia.
O Maraca é nosso, proclama a galera. Jamais deveria deixar de sê-lo. Lar cativo de alvinegros, vascaínos, tricolores, rubro-negros. E de quem mais chegar, cantaria Joyce. Colorido como o carnaval.
Nenhum contrato mudaria tamanha vocação, tampouco ousaria dela prescindir. Valorizá-la é tão importante quanto melhorar as atrações na jornada de entretenimento e erradicar toda forma de discriminação.
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Alexandre Carauta é professor da PUC-Rio, doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.