Lazer esportivo, um aliado precioso à preservação da infância
Do queimado à roda de altinha, esporte ajuda a afastar sabotagens às crianças numa sociedade afogada por tsunamis digitais e algorítmos gananciosos

O lazer esportivo insinua-se um bote salva-vidas no mar de excessos. Excesso de tela, de treta, de indiferença. Excesso de adrenalina, poluição, vaidade.
A sociedade do excesso desemboca em contragolpes climáticos, extremismos, colapsos éticos. Outras sequelas avançam sorrateiras, como abusos às crianças adubados pela permissividade cínica na internet. Extrapolam as violências denunciadas pelo ativista Felipe Bressanim Pereira, o Felca.
Pedofilia, erotização e consumismo amolam as garras na complacência com as redes. Mutilam a inteligência, a sensibilidade, a segurança emocional. Mesmo sem a ferocidade da miséria e da guerra, devoram a infância num canibalismo dissimulando, subterrâneo, nem por isso menos cruel.
A responsabilização das plataformas digitais, para a qual esboça acordar o Congresso, é um dos remédios inadiáveis. Alinha-se ao compromisso constitucional de proteção a crianças e adolescentes.
Mudanças culturais revelam-se igualmente imprescindíveis. Implicam um estilo de vida verdadeiramente ecológico.
Irradiada pelo Papa Francisco na Encíclica Laudato si’, a ecologia integral agrega princípios e comportamentos centrados no bem comum. Envolvem desde políticas de preservação da biodiversidade até rotinas desaceleradas, fraternas, permeáveis à prosa, à brisa no rosto, ao equilibro físico e mental. Rotinas coloridas de simplicidade.
Fonte de bem-estar e confraternização, de desenvolvimento atlético, cognitivo, psicológico e espiritual, o esporte constitui um precioso aliado ao reencontro com a harmonia. Incluí-lo no dia a dia é decisivo à saúde individual e coletiva, atestam organizações como o Colégio Americano de Medicina Desportiva.
O hábito configura um antídoto contra a intoxicação virtual, especialmente nociva à criançada. Ao brincar de pingue-pongue, de garrafão ou de queimado, ao pedalar, surfar ou bater uma bolinha com a turma, ao se aventurar nas rodas de altinha, de bobo, de vôlei, a criança se mantém criança. Irriga os músculos, a imaginação, a empatia. Abraça a ecologia.
“Pensar a promoção desportiva na perspectiva da ecologia integral nos confronta com a necessidade de uma mudança de estilo e de mentalidade a nível comunitário. (…) É preciso dissociar o tempo livre tanto da lógica comercial e consumista, como da confusão dos tempos de vida. O esporte pode ajudar a ordenar esta mistura, oferecendo lugares e momentos de regeneração, ricos em proximidade física, sociabilidade, diversão, improdutividade, gratuidade e significado”, propõe o pesquisador italiano Daniele Pasquini no livro “Laudato Si’, Sport! Orientações para uma ecologia integral através do esporte”. (Originalmente editada pela Fondazione Apostolicam Actuositatem ETS – Editrice Ave, a obra é lançada em português com o Selo PUC+. Inaugura a série de publicações impulsionadas pela Cátedra Guido Schäffer de Esporte, Fé e Cultura, da PUC-Rio.)
O lazer esportivo pode regenerar o universo infantil, conduzir um reencontro com a leveza de pipa nas metrópoles afogadas por tsunamis cibernéticos, algoritmos gananciosos, artificialidades. Pasquini observa:
“O esporte responde à necessidade de reagir à urbanização selvagem, oferecendo a oportunidade de fazer respirar as nossas cidades. (…) Os espaços desportivos devem ser considerados e melhorados também pelo seu valor social. Afinal, a relação entre o esporte e a cidade está cada vez mais simbiótica, indo além das instalações desportivas. São cada vez mais os esportes que colonizam os espaços das cidades, transformando-os em parques infantis”. Assim seja.
O azul e o verde cariocas inspiram essa reeducação. Vocacionado às atividades ao ar livre, o Rio é um quintal para a infância correr descalça, despretensiosamente feliz. Preservá-la das sabotagens e opressões contemporâneas é uma das urgências à nossa porta.
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Nossa altinha ganha o mundo
Gosto de ciranda infantil, as rodas de altinha reluzem a rima tão carioca entre esporte, cultura praiana e vida saudável. A triangulação é narrada com capricho e irreverência pela cineasta Cecília Lang em “Bola pro alto”. Premiado no Festival Internacional de Cinema e TV de Esporte (FICTS), ano passado, em Milão, o documentário encantou também nos Estados Unidos, na Alemanha e em Portugal. Agora parte para o World FICTS Challenge, em Nagano, no Japão.
Cecília lança campanha de apoio coletivo para ela e mais dois artífices da modalidade acompanharem a exibição do longa no outro lado do mundo. Completam o trio os professores João Montrose, precursor do movimento Flow, e Ighor Albuquerque, sócio da escola Altinha Leme, um dos personagens do filme.
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Alexandre Carauta é jornalista e professor da PUC-Rio, integrante do corpo docente da pós em Direito Desportivo da PUC-Rio. Doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.