Imunidade artificial da roupa neutra corrompe a arquibancada
Urgência em combater a violência simbólica e material naturalizada nos estádios evidencia-se também em renúncias à camisa do clube para prevenir agressões
O clímax da viagem se aproxima. Perto de verem o time noutra capital, o pai suplica para o filho vestir “roupa neutra”. Teme represálias dos inquisidores que confundem o diferente com um inimigo a ser dizimado. Frequentam torcidas, escritórios, reuniões familiares. Sentem-se especialmente autorizados a violentar o divergente nas frágeis democracias inclinadas menos aos livros do que às armas.
Com a convicção juvenil, o rapaz retruca:
“Não vou tirar a camisa [do time]. Temos o direito de usar o que quisermos usar. Além disso, se todos agissem assim, a arquibancada ficaria descolorida. Deixaria de ser arquibancada”.
Argumento perfeito para um mundo perfeito. Evoca a liberdade universal de pensamento e expressão. Garanti-la é dever constitucional do Estado democrático. A realidade teima em desobedecer.
Sistemáticas agressões dentro e fora dos estádios retratam a dificuldade em resguardá-la. Deriva de precariedades crônicas na educação, na formação cívica, nas táticas de segurança.
Meio a contragosto, o filho enrola na mão a malha branca sugerida pela prudência. Trata de vesti-la ao se deparar com palavras e olhares nada amistosos nas imediações do estádio. Só reencontra a paz quando alcança a área reservada aos visitantes. Retorna à camisa do coração.
Quatro policiais vigiam as duas entradas do trecho de 300 metros quadrados na rua interditada. É delimitado por um portão, de um lado; e uma fileira de grades, do outro. Ambulantes animam a concentração improvisada. Bebida gelada, churrasquinho, lembrancinhas.
Lá os dissonantes usufruem uma permissão tácita para transitarem sem susto. Libertam o louvor ao clube nas vestes, nos papos, nos cânticos regados a cerveja. Ritual quase sagrado antes de ganharem a rampa até o jogo. Aquecimento à iminente catarse tribal.
Embora descontraído, o curral representa o avesso da arquibancada. Arquibancada transborda diversidade. De vozes, cores, gente. Significa o inverso da torcida única imposta em algumas praças e circunstâncias com a justificativa de evitar brigas.
O curral dos visitantes e o arbítrio da torcida única atestam uma falência do convívio plural. Normalizam uma incapacidade conjunta de respeitar e gerir o contraditório. Jogam a toalha.
A recorrência de ofensas, assédios e pancadarias fundamenta, de certa forma, a resignação convertida no isolamento das torcidas. O paliativo, acreditam seus apoiadores, previne imbecilidades como o xingamento racista testemunhado pelo jovem e seu pai durante a partida. Por pouco não desencadeia um tumulto.
“Bora sair daqui, antes que a confusão aumente”, aflige-se o pai.
“Relaxa. Normal. É assim mesmo”, banaliza o filho.
Na saída, a tal normalidade novamente obriga o rapaz ao refúgio da malha neutra. A dupla carioca segue apreensiva até embarcar no carro de volta ao hotel. Ufa!
Da tarde inesquecível, levam uma mistura tão conflituosa quanto corriqueira. Extravasam juntos a paixão clubística, mas a festa é ligeiramente aguada pelo receio intermitente de reforçarem as estatísticas da violência. Não deve ser assim.
Nenhuma boçalidade haveria de contaminar a ciranda de emoções afloradas no ardor de torcer. Ansiedade, alegria, decepção, a angústia do gol que não chega, a euforia da virada, o medo da derrota. Jamais o medo latente de ataques verbais e físicos.
Pai e filho teriam de saborear, no domingo esportivo, algo próximo das porções de paraíso degustadas na véspera: o arroz de polvo preparado divinamente por Thalita Barros, sob reverência dos paulistanos; e o deslumbre imersivo da exposição “Amazônia”. Em meio à penumbra, as 194 fotos de Sebastião Salgado iluminam o mergulho na exuberância do bioma agonizante. O vigor da arte num grito de sobrevivência.
Poemas sonoros de Villa-Lobos, Rodolfo Stroeter e Jean-Michel Jarre escoltam o passeio imagético afagado com os cantos das árvores, dos bichos, das águas, sussurros da floresta. Sinfonia delicadamente harmonizada pela curadora e cenógrafa Lélia Wanick Salgado.
O espetáculo futebolístico também carrega, sabemos, potencial artístico. Consumá-lo depende não só de sua força estética e poética. Implica a difícil tarefa de deixá-lo menos permeável a comportamentos belicosos culturalmente cercados de complacência.
A violência nos assombra desde que caímos das estrelas. Material e simbólica, camuflada e explícita, ordinária e hedionda, difusa e institucionalizada, não raramente espetacularizada. Fincada nas discriminações estruturais, na ganância, na perversidade humana. Historicamente concentrada sobre os mais vulneráveis e os desajustados aos domínios morais, políticos, econômicos.
Erradicá-la dos ambientes mediados pelo futebol exige, portanto, avanços setoriais e conjunturais. Educativos, legislativos, jurídicos, administrativos. Acima de tudo, coletivos. Envolvem poder público e todos nós cidadãos. Contemplam clubes, federações, patrocinadores, jogadores, treinadores e demais integrantes da indústria esportiva.
Variam do empenho para melhorar a Educação – o aprendizado cívico, ético, socioambiental – ao aperfeiçoamento das práticas de inteligência e abordagem policiais. Detêm a responsabilidade de assegurar, indistintamente, os direitos de ir e vir, divergir, de se expressar cada qual à sua maneira, como bradava Kurt Cobain em “Come as you are”.
A mudança exige, entre outros esforços. o amadurecimento das punições (cível, financeira, esportiva) a injúrias racistas, sexistas, homofóbicas, xenofóbicas. Exige campanhas para banir esses crimes da arquibancada, sem prejuízo da sua genética carnavalesca. Exige um pacto entre atletas, técnicos e árbitros para dirimir as insuportáveis reclamações nos gramados. Desabonos à civilidade e ao consumo.
A cruzada larga de políticas comprometidas em extinguir concessões a preconceitos e intolerâncias naturalizados no universo do futebol. A Autoridade Nacional para Prevenção e Combate à Violência e à Discriminação no Esporte (Anesporte) promete pavimentar o caminho.
Prevista na Nova Lei Geral do Esporte, nasce para facilitar a aplicação de medidas educativas e punitivas a clubes, torcedores e empresas que cometam ou admitam qualquer violência no setor. O êxito não virá sem a superação de retrancas econômicas, políticas, culturais.
Aí, com sorte, o jovem torcedor não precisará mais trair o discurso libertário com a imunidade artificial da roupa neutra. Celebraremos, então, a vitória da liberdade de pensar, torcer, vestir diferente. Vitória do colorido. Nas arquibancadas, nas ruas, nos capilares sociais.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, também formado em Educação Física.