Fla-Flu entre a eficácia dos campeões e beleza dos inesquecíveis
Contra o invejável elenco rubro-negro, dinizismo tricolor busca, mais do que o trono carioca, recompensas além dos aplausos e do tempo
Coroado no Oscar, o controverso “Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo” tabela com a velocidade e a fragmentação contemporâneas. Reproduz a vertigem das telas onipresentes que convertem o cotidiano no Coelho da Alice. A sintonia explica, em parte, as sete estatuetas.
O futebol não foge às orquestrações híbridas e fugazes das rotinas ditadas por algoritmos. Elas banham padrões esportivos e econômicos, esquemas de jogo, comportamentos de atletas, técnicos, torcedores.
A arquibancada, por exemplo, expande seu sincretismo. Liturgias tradicionais misturam-se a dinâmicas ciberculturais. Os coros irreverentes, o abraço no desconhecido, as vaias ao juiz mesclam-se a filmagens e postagens compulsivas, extensões online incorporadas à experiência de torcer.
A arquitetura contemporânea se reflete também na valorização da intensidade, não raramente confundida com pressa, e da polivalência. Terreno fértil a meias menos cerebrais, mais vigorosos e versáteis.
A mudança flui desde a década de 90. Estende-se do dente de leite à elite profissional. Incide sobre a maioria dos times e seleções, inclusive a brasileira. Desemboca na escassez de maestros, cuja cadência afronta a aceleração supostamente indispensável ao sucesso.
A transformação não se deve só à busca de competitividade, tampouco aos progressos físicos, técnicos, táticos. Resulta do encaixe com o que Gilles Lipovetsky chama de hipermodernidade.
Nela prevalecem, assinala o filósofo francês, a fragmentação, o individualismo, a hibridação, o utilitarismo, o transitório. Traços não propriamente aliados ao pensamento, à contemplação.
Nem por isso abdicamos dos singelos alumbres que oxigenam a alma, e amansam o boi brabo no qual montamos todo santo dia. Levezas de degustação lenta, como um piquenique sob a luz mansa do outono.
O cheiro do capim molhado, do pão fresco, do amor que chega. A imersão de um bom livro, uma boa música, a despretensão do filme com pipoca. A passarinhada festejando a manhã. O lanche da vó depois do trabalho escolar, o bigode de chope depois da ralação. A preguiça no riacho. O chamego que resiste ao embrutecimento. O drible mágico que bagunça defesas, estatísticas, certezas. Todas as maravilhas miúdas que espanam as claustrofobias de plantão.
Difícil conciliá-las com a fugacidade e a instrumentalização reinantes. Escretes encantadores alcançam tal proeza. Não necessariamente são correspondidos por títulos, como a Holanda de 74 e o Brasil de 82. Consagram-se na memória, no imaginário.
Fernando Diniz persegue a façanha. Suas equipes jogam bonito. Tocam a bola como até não muito tempo atrás se costumava tocar em todos ou quase todos os campinhos e campões do país.
Equipes insinuantes, envolventes, inclinadas ao ataque. Deliciosas de ver. A vaporosa recompensa das vitórias esbarra ora na falta de consistência defensiva, falta de equilíbrio, ora na falta de sorte, nunca na carência de frescor e autenticidade.
Talvez o treinador tenha amadurecido, nas Laranjeiras, a harmonia sem a qual o caneco bate na trave e o brilho parece de pedra falsa. Uma dosagem delicada entre a ciranda de passes e a objetividade produtiva, o ímpeto ofensivo e a segurança, a fluidez contemporânea e a coesão, entre a eficácia dos campeões e a beleza dos inesquecíveis.
A combinação incomum deriva de convergências cirúrgicas. Da concepção precisa à obstinação em ensaiá-la. Do matrimônio com peças preparadas para executá-la à capacidade de ajustá-la tanto às circunstâncias da partida quanto às inspirações individuais. Nos melhores dias, o Fluminense dinizista a atinge, beira o encanto. Deixa a galera louca.
O mérito rende a Fernando Diniz dois reconhecimentos tão importantes quanto troféus: o substantivo que avaliza um estilo próprio e a admiração até de adversários. Raridade.
Só os deuses sabem se o dinizismo ganhará mais do que aplausos. Nem eles arriscam palpite sobre a disputa do trono carioca contra o invejável elenco rubro-negro.
Um Fla-Flu desses não acolhe favoritismo, muito menos fugacidade. Insinua-se eterno, como a fração de silêncio que acompanha o acorde final de um concerto. O Coelho da Alice jamais entenderia.
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Alexandre Carauta é professor da PUC-Rio, doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.
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