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Daniel Sampaio

Por Daniel Sampaio: advogado, ativista do patrimônio, embaixador do turismo carioca e fundador do Instagram @RioAntigo Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
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Do esplendor às ruínas: como anda o patrimônio cultural carioca?

Na semana em que se celebrou o Dia Nacional do Patrimônio Cultural, perguntamos a especialistas cariocas: o Rio de Janeiro tem motivos para comemorar?

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Atualizado em 22 ago 2020, 18h11 - Publicado em 21 ago 2020, 18h03
Interior do edifício do Automóvel Clube do Brasil, um exemplar neoclássico do século XIX, que já foi o mais importante salão de bailes imperial, exemplifica bem o estado atual do patrimônio cultural carioca: uma história riquíssima em ruínas, devido ao descaso das três esferas de governo e o desinteresse de boa parte da sociedade civil -  (Sheila Castello - SOS Patrimônio/Reprodução)
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Quem nunca se indignou ao passar por locais históricos da cidade e ver cenas tristes de abandono? O descaso com o patrimônio cultural carioca é de arrepiar. A cidade do Rio de Janeiro, capital do Império português, do Império do Brasil e da República, parece estar definhando diante dos nossos olhos. O incêndio do Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, há quase dois anos, simboliza bem essa situação.

Muitas iniciativas positivas devem ser reconhecidas, como os importantes restauros do Convento do Carmo, do Largo do Boticário e do Hospital da Beneficência Portuguesa, entre outros, mas são iniciativas pontuais em meio à imensidão de lugares históricos largados à própria sorte.

Ao longo desta semana em que se celebrou, no dia 17 de agosto, o Dia Nacional do Patrimônio Cultural, conversamos com dez especialistas sobre o atual estado do patrimônio histórico carioca e pedimos, ainda, que identificassem um lugar que sintetizasse as necessidades do setor em nossa cidade.

ALINE MONTENEGRO – Doutora em História (UFRJ), pesquisadora do Museu Histórico Nacional e uma das idealizadoras do blog “EXPORVISÕES”

“Há motivos para comemorar, com os avanços na percepção geral de patrimônio, que hoje é visto de forma mais plural, e na maior participação popular na definição do que se deve preservar. Mas há mais motivos é para lutar contra os ataques que as políticas públicas para o patrimônio têm sofrido, com o desmonte das instituições e o desrespeito aos profissionais da área. Na nossa cidade, o antigo torreão do Mercado Municipal da Praça XV, onde hoje está o restaurante Ancoramar, está bem maltratado. Com a construção da finada Av. Perimetral, o mercado foi quase totalmente destruído, restando apenas um dos torreões. Trabalhando no Museu Histórico Nacional, me deparava com ele todos os dias compondo a paisagem da recém-reformada Praça Marechal Âncora. Embora a edificação tenha passado por reforma recente de recuperação da cúpula e andar térreo, segundo a administração do restaurante Ancoramar, a continuidade das obras aguarda autorização do órgão estadual de patrimônio, o INEPAC.”

Flamboyant na Praça Marechal Âncora, próximo ao Restaurante Albamar
Torreão do Mercado Municipal da Praça XV, inaugurado em 1908 e feito em estruturas de ferro pré-moldadas na França. Atualmente em abriga o restaurante Ancoramar – (Halley Pacheco de Oliveira - Flickr/Reprodução)

ANDREA REDONDO – arquiteta e urbanista, ex-presidente do Conselho Municipal do Patrimônio Cultural e responsável pela página “Urbe Carioca”

“Temos maravilhas paisagísticas e arquitetônicas no Rio e, por isso, sediaremos o Congresso Mundial de Arquitetura no ano que vem. São qualidades que, porém, não afastam a enorme necessidade de atenção e cuidado para com o nosso rico patrimônio cultural. A ausência de valorização e de ensinamentos sobre o tema leva ao desrespeito e ao abandono, a começar pelos bens culturais propriedade da União, Estado e Município, cuja conservação deveria ser exemplar. Na cidade do Rio, escolho a Praça Mário Lago, conhecida como Buraco do Lume, um espaço que tem valor afetivo para a população e que também deve ser entendido como o entorno do casario da Rua São José. Corre o risco de sumir, pois a “Lei do Puxadinho”, recentemente aprovada pelos vereadores, permitiu construções no local.”

Buraco do Lume: decreto de 1986 permitia apenas equipamentos culturais no local
A falência da construtora Lume na década de 1950 deixou uma obra inacabada na Rua São José. Anos mais tarde, o espaço foi incorporado à paisagem urbana do Centro e é hoje palco de manifestações políticas e de atividades esportivas. O Buraco do Lume corre o risco de desaparecer, com a ˜Lei do Puxadinho˜, recentemente aprovada na Câmara Municipal – (Domingos Peixoto/Agência O Globo)

AUGUSTO IVAN FREITAS PINHEIRO – arquiteto e urbanista, pós-graduado em planejamento urbano (UFRJ) e ex-presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade

“Há motivos para se comemorar porque o Brasil avançou muito neste aspecto, principalmente a partir da década de 1980. O maior desafio para o patrimônio cultural é a ignorância da sua importância do na formação da identidade do país e da sua contribuição para o desenvolvimento sócio-econômico. Destaco como exemplo de abandono o Automóvel Club do Brasil, um edifício neoclássico na Rua do Passeio, que já foi residência de nobres, cassino imperial e até prédio da nossa primeira Assembleia Constituinte republicana. Sofreu invasões e muito vandalismo e agora seu telhado desabou. Se nada for feito, podemos perdê-lo por completo com a próxima chuva.”

AUTOMÓVEL CLUBE OPCAO 2 – O GLOBO
A fachada do Automóvel Clube do Brasil, na Rua do Passeio, passou por restauro alguns anos atrás e esconde o estado real do interior (veja foto principal deste artigo). O teto já desabou e qualquer “chuvinha” pode levar o prédio a desabar internamente – (Domingos Peixoto/Agência O Globo)

CARLOS FERNANDO ANDRADE – Doutor em Arquitetura & Urbanismo (UFRJ), ex-superintendente do IPHAN-RJ e Conselheiro Federal titular (CAU-RJ)

“A atividade de proteção do patrimônio já foi algo quase quixotesco. Hoje, por mais vilipendiada que seja, pode até derrubar ministro. O maior desafio é falta de articulação das três esferas federais, que deveriam estar discutindo a criação de um novo fundo para o setor. O Rio de Janeiro paga alto por ter tido um passado tão glorioso, que, infelizmente, não corresponde com o presente de crise financeira e pouca capacidade de articulação política. Escolho o Palacete São Cornélio, na Glória, que pertence à Santa Casa. Ele possui tetos com pinturas decorativas, que estão se arruinando, de maneira irrecuperável. Houve vandalismos e saques, mas nenhuma providência foi tomada. Dar um uso contemporâneo a um imóvel daqueles requer muito jogo de cintura dos órgãos de preservação e visão dos investidores. As duas coisas são raras.”

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Na Glória, o Palacete São Cornélio, da Santa Casa de Misericórida, está em petição de miséria. Em péssimo estado de conservação, devido à falta de uso, vem sendo invadido e furtado constantemente – (Marco Antonio Cavalcanti/Agência O Globo)

MANOEL VIEIRA – arquiteto e urbanista, Mestre em Desenvolvimento e Sociedade (UFRRJ), ex-diretor do INEPAC e ex-superintendente do IPHAN-RJ

“Devemos celebrar a memória daqueles que dedicaram suas vidas em defesa da preservação do nosso patrimônio, sem os quais nossa identidade cultural seria menos vibrante. Hoje vivemos um momento em que perseguições ideológicas de dois grupos políticos inversamente proporcionais em sua insensatez invertem valores e tentam promover apagamentos simbólicos. Escolho o Templo da Humanidade, sede da Igreja Positivista do Brasil, que, mesmo tendo passado por obra recente de restauro, corre outro tipo de risco: grupos extremistas de direita, contrários aos ideais republicanos que aquela construção representa, têm feito ameaças ao templo nas redes sociais.”

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O Templo da Humanidade, na Rua Benjamin Constant, na Glória, foi inaugurado em 1897 e, depois da queda de seu telhado, passou por restauro recente. Porém, vem sofrendo ameaças de grupos extremistas nas redes sociais – (Pedro Teixeira/Agência O Globo)

MARCONI ANDRADE – restaurador, ex-conselheiro municipal de patrimônio cultural e fundador do grupo SOS Patrimônio

“No geral, não há o que se comemorar. Restauros como a Beneficência Portuguesa, o prédio do IPHAN, o Convento do Carmo, o Largo do Boticário e o Palácio Capanema devem ser reconhecidos, mas não passam de grãos de areia no mar de destruições do nosso patrimônio. Existe um enorme descaso das três esferas de governo e também dos proprietários. Por exemplo, a Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, de 1850, que já esteve a poucos metros da Baía de Guanabara, antes dos diversos aterros. Por oito anos fechada, a igreja foi tombada em 2007. Abandonada pela sua proprietária, foi várias vezes saqueada. Atualmente, nossa esperança é a de que a Arquidiocese assuma a sua restauração.”

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A Igreja de Nosso Senhor do Bonfim e Nossa Senhora do Paraíso, na antiga ponta do Caju, de frente para a Baía. Essa joia arquitetônica de 1851 está abandonada e prestes a ruir. Esperam-se providências da Arquidiocese – (Halley Pacheco de Oliveira - Flickr/Reprodução)

OLÍNIO COELHO – arquiteto e urbanista, professor da FAU/UFRJ e membro do Conselho Estadual de Tombamento

“A preservação do patrimônio cultural é um processo de educação. À medida que a sociedade vai tomando consciência da importância de seu universo cultural a preservação vai sendo efetivada gradativamente. O patrimônio carioca que mencionarei é a casa da Fazenda do Capão do Bispo, em Del Castilho, uma construção de 1761. Participei do primeiro restauro, no governo de Chagas Freitas, na década de 1970. Espero que os entes responsáveis pela preservação do patrimônio possam providenciar sua imediata preservação, dando ao bem tombado uma digna utilização e integrando-o na sociedade carioca.”

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Tombada pelo Iphan em 1947, a antiga casa da Fazenda do Capão do Bispo é uma das mais importantes edificações rurais setecentistas da cidade. Em estado precário de conservação, necessita de restauro urgente – (Bruno Kaiuca/Agência O Globo)

RODRIGO AZEVEDO – arquiteto e urbanista, professor, mestre em cidades pela Architectural Association e especialista em projetos de restauro

“Há motivos para comemorar, como o restauro da “Casa da Glória” pelo João Braune. No entanto, a falta de financiamento ao patrimônio ainda é um grande desafio, apesar das leis de incentivo. O bem que destaco é a Estação Leopoldina, cujo projeto de restauro já obteve aprovações de órgãos patrimoniais, e teve determinação da Justiça para o início das obras, mas ainda carece de aporte de verbas de incentivo pelas empresas. A captação de recursos começou em março, mas ainda não obteve resultados. Na estação, funcionará um museu sobre os transportes do Rio e parte do fluxo da Central do Brasil será absorvido. Estão previstas obras emergenciais de restauração, consolidando as fachadas, demolindo anexos que não condizem com o original e implementando novas funcionalidades.

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A Estação Leopoldina, de 1926, está abandonada há quase vinte anos e suas obras de restauro foram objeto de imbróglio judicial. As obras de restauro já foram autorizadas, mas precisam de recursos que não tiveram ainda sucesso na sua captação – (Pablo Jacob/Agência O Globo)

SONIA RABELLO – Doutora em Direito Público, professora de Direito Ambiental e ex-vereadora

“Enfrentamos dois grandes desafios. O primeiro, de longo prazo, refere-se à reconstrução das áreas técnicas de patrimônio e de uma política de patrimônio nas três esferas governamentais. Os órgãos foram enfraquecidos em suas áreas técnicas. No INEPAC, órgão estadual, faltam servidores de caráter efetivo, o que impede a implementação de políticas permanentes. No entanto, há um claro reconhecimento da importância da política patrimonial hoje em dia e as políticas mudaram muito desde as últimas décadas. Destaco como patrimônio a ser protegido a Floresta do Camboatá, por suas propriedades ambientais, ecológicas e paisagísticas. A pretensão de se derrubar o último resquício de mata atlântica em lugar baixo na nossa cidade para se fazer um autódromo representaria a destruição de um bem público, refúgio de animais em extinção, que deveria ser área de preservação permanente, para fins privados.”

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Cobiçada pela Prefeitura para a construção de um novo autódromo em Deodoro, a Floresta do Camboatá, é o último resquício de mata atlântica original em lugar baixo na nossa cidade – (Website SoniaRabello.com.br/Reprodução)

WASHINGTON FAJARDO – arquiteto e urbanista, ex-presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade e Harvard Loeb Fellow

“O patrimônio carioca está muito mal. São necessários incentivos econômicos e financeiros e de reocupação da região central, que sofre especial abandono e esvaziamento inclusive devido à pandemia. Infelizmente, o momento é altamente desafiador, com o sucateamento político do IPHAN. Vivemos uma era de brutalidade que faz “passar a boiada” sobre tudo aquilo que depende de cuidado e afeto. O momento político é horroroso. E quando tudo vai mal, o patrimônio não é diferente. Aumentar a zeladoria dos bens se faz necessário. As brigadas do patrimônio do INEPAC foram uma boa ideia nesse sentido. Além disso, ter uma guarda municipal dedicada ao patrimônio cultural faria toda diferença por exemplo. Destaco a antiga sede do Instituto de Eletrotécnica da UFRJ, na Praça da República, que corre risco de cair e é um dos muitos exemplos de bens da antiga Universidade do Brasil em situação precária, como também a Casa do Estudante e o campus da Praia Vermelha, antigo Hospício Dom Pedro II.

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Edifício do século XIX que abrigou o Instituto de Eletrotécnica e a Escola de Comunicação da UFRJ, na esquina da Rua Visconde de Rio Branco com o Campo de Santana, no Centro — apenas um dos muitos bens tombados da UFRJ que estão definhando diante de nossos olhos – (Website SoniaRabello.com.br/Reprodução)

E a lista de abandono dos locais históricos cariocas não para por aqui. Lugares de extrema importância para a memória e a identidade da nossa população, na região do porto conhecida como Pequena África, como o Cais do Valongo, encontram-se em péssimas condições, sem sinalização, sem manutenção, sem conservação, mesmo com o recente reconhecimento como patrimônio da humanidade pela UNESCO. Outros lugares, como o antigo Museu do Índio (Aldeia Maracanã), a Colônia Juliano Moreira, a Fazenda do Viegas e o Matadouro Imperial de Santa Cruz estão tão abandonados quanto os lugares acima mencionados.

O descaso e a falta de priorização das autoridades e as dificuldades de financiamento são, sem dúvida, alguns dos maiores desafios para a preservação do patrimônio cultural. Porém, o desinteresse de grande parte da sociedade civil pode ser o maior de todos. Para além da contemplação de belas fotografias que despertam a nostalgia, devemos pressionar para que o Rio Antigo seja uma das pautas prioritárias das campanhas eleitorais que inundarão as redes nos próximos meses.

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A preservação da nossa história serve, é claro, para incrementar o turismo, impulsionar a economia dos bairros e desenvolver a nossa cidade. Mas não deixemos de lado o que mais importa: o Rio Antigo nos ajuda no reencontro com a nossa própria identidade.

*Daniel Sampaio é carioca do Grajaú. Advogado, memorialista e ativista do patrimônio. Fundador do perfil @RioAntigo no Instagram.

**Colaboração de Amanda Thurler, Ana Paula Reis, Heitor de Mello, João Freire, Luana Ferreira e Rodolfo Amaral, redatores da Equipe Rio Antigo.

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