Os melhores chefs do Rio vêm cultivando seus ingredientes
As magníficas hortas do Angá e do Lasai

Pouca coisa na vida me dá mais prazer do que ver a Lydia cozinhar. Sempre vestida com uma roupa de linho, ergue a sobrancelha para a panela, mexe, prova… parece satisfeita, de um jeito crítico. Com passos apressados, vai até o prato, pega a carne, junta o legume, entorta a cabeça, ajeita a folhinha, sai do transe e vem até sua mesa com um sorriso.
Tem uma prosa lindíssima ali, de quem ama o ingrediente profundamente e por muito tempo. Entrega o prato como a mãe que entrega um filho para a vida.
Uma das grandes refeições que fiz, nesses 30 anos de escrita gastronômica, foi no Blue Hill at Stone Barns. O que mais me surpreendeu não foi a gigantesca fazenda e estrutura por trás dos 41 pratos que, por acaso (e milagrosamente), não me pesaram. Foi o fato de todos estarem bons.
Chefs pelo mundo todo vêm investindo em hortas próprias. Só na Inglaterra, ao menos 9 dos estrelados Michelin cultivam seus próprios alimentos. E qual a vantagem, pergunto, de adicionar mais trabalho ao abacaxi imenso que já é tocar um restaurante?
Visitei, junto com a equipe do Instituto Bazzar, o jardim agroflorestal de Lydia Gonzalez, em Nogueira, e a horta de Rafa Costa e Silva, no Vale das Videiras e procurei saber.
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Depois de morar na praia, na montanha, no Pará, no Espírito Santo, no Sul do Brasil e no Norte da Espanha, Lydia abre o Angá Ateliê Culinário, em Nogueira, que toca junto com Bruno Sobreira, seu braço direito e amigo querido.
Voltar para Petrópolis foi a redescoberta de um território com pouca oferta, porque a maior parte dos orgânicos saía direto para as feiras do Rio de Janeiro.
Começou se encantando pela espontaneidade das PANCs, tão pouco convencionais quanto seus nomes: pariparobas, oxális, moringas ou as beldroegas, que percebeu que se tornam tão salinas quanto a salicórnia da beira da praia, quando grelhadas. Mas “juntar um monte de mato”, como diz, não garante bom resultado.
Começou a conversar com produtores e entender seus desafios. Aprendeu rapidamente duas coisas: a primeira é que precisava ser mais flexível e criativa, aceitando o que a natureza oferece; a segunda, que a boa comida acontece sempre com muito mais facilidade quando o ingrediente está no ápice.

O projeto de seu jardim agroflorestal, até por suas dimensões, não surgiu com a ideia de atender toda a produção do restaurante, mas como um laboratório de possibilidades. É fonte de inspiração, de compreensão da biodiversidade e teste de ingredientes que, se aprovados, viram sugestão para produtores amigos, em maior escala.
Comprou o terreno ao lado do restaurante e, com a ajuda do biólogo João Carlos, da Raminho, começou com aromáticos, que precisam de pouco espaço para dar muito resultado. Tem verbenas, macassás, alfavacas anisadas, capim-limão, carqueja e aroeiras – um canteiro de perfumes, aromas e sutilezas que empresta a cada prato.
Estaria feliz cultivando produto preferido, a mandioca, mas além delas, já tem um canteiro de chás, com capim-limão e limonete, e ainda, pimenta-do-reino, figo, banana, mamão e curry. Perto da entrada, um cheiro de alecrim recebe quem chega, ao lado de um feijão guandu, que também nutre o solo. De quebra, João Carlos fez uma composteira na cerca que dividia o terreno antigo ao anexado.

Para o biólogo, cuidar do jardim de um restaurante é lembrar que seu trabalho também envolve “restaurar”, tanto o solo quanto um processo de cultivo perdido ao longo do tempo.
Hoje, Lydia acha que o desafio de cozinhar o que vier é muito estimulante: “Se a gente tem um repertório de técnicas grande o suficiente para encontrar um preparo que funcione com o produto que a natureza ofertou, é lindo!”. E acha que, por vezes, as melhores técnicas não são as mais modernas. Fluem, na sua bagagem de 25 anos de cozinha, como fluíam para as donas de casa de antigamente, que sempre conheceram seu quintal.
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“Demorei dez anos de restaurante aberto e doze de carreira para fazer exatamente o que eu queria.”, disse Rafa Costa e Silva, em conversa no Vale das Videiras.
Quem conhece o novo Lasai, sabe que a experiência no balcão de apenas 10 lugares é íntima, e inclui a apresentação dos legumes frescos, com o melhor do dia. Mas a estória começa na horta, onde conversou conosco devorando absolutamente tudo que via pela frente: um pedaço de folha ou o encantador pepino-melão, avaliando o ponto de cada coisa.
Foi no Mugaritz que aprendeu a respeitar produtores e, principalmente, os vegetais. Até porque, passou horas por dia, durante muitos anos, preparando legumes e verduras para um só prato – uma homenagem a Michel Bras (tri-estrelado chef francês, um dos precursores no protagonismo de flores comestíveis e ervas nos pratos). Aquilo lhe encantou.
Quando foi promovido a chef do restaurante basco, conta que eram 20% de trabalho braçal para 80% de estudo sobre ingredientes. Ali, ganhou a cultura de jamais deixar uma cenourinha sequer, parada na geladeira.
A horta que atendia o restaurante da Espanha era um vigésimo da que tem hoje, no Vale.
Foi pegando “nacos” do canteiro da mãe, na casa de campo da família, que o projeto cresceu. A ideia sempre foi a de plantar coisas que não encontrava no mercado, como diferentes tipos de rabanete (melancia, roxo ou branco), beterrabas e cenouras coloridas ou o tomatillo mexicano, por exemplo. Na minha visita, andava encantado pelo pepino-melão que finalmente conseguiu cultivar.

De início, tentou cuidar de tudo, pessoalmente. Saía do restaurante no fim do turno, pegando a estrada até a Serra, mas o esforço era hercúleo. Recentemente, passou a contar com o apoio da Food Garden, de Mario Henrique de Aragão e Caroline Batista de Aragão, que acompanham a evolução dos canteiros, mandam relatórios e requebram para atender as demandas de tamanhos, variedade e ponto de colheita.
“Trabalhar com o Rafa é ser desafiado o tempo todo”, diz Mario. “Eu quero algo diferente! Ele diz. A horta está linda, mas quero algo diferente!”.
Para isso, Mario busca guardiões de sementes por todo o Brasil e, por vezes, testam uma variedade 4 ou 5 vezes até acertar. E mais: o chef gosta de poder retirar alguns legumes antes ou depois da maturação e, ainda, de poder brincar com as cores. “Esse eu queria mais verde, então colocamos na sombra. Aquele, eu quero mais colorido!”, e assim seguem.
Rafa conta com dois braços fundamentais, no Lasai: Vinicius Maciel, corresponsável pela criatividade, que pesquisa produtores, viaja, vai a congressos e lê muitos livros; e Marcelo Malta Andrade, que também contribui com a criação, mas tem maior foco na operação, tanto do Lasai quanto do Lasai Eventos, coordenando e treinando as equipes.

Vini conta que, quando conseguem cultivar e colher um produto original, seu trabalho é pensar em como aproveitá-lo, de todas as formas.
É o caso do tupinambo, uma raiz terrosa com jeito de gengibre, que queriam usar, há muito. O seu trabalho é entender se ele pode virar chips, se será fatiado no mandolim ou vai ser ralado, confitado ou assado. Também sugere combinações, por exemplo, com pratos que rimem com sua estrutura terrosa, como folha de mostarda ou cogumelos. Enfim, a ideia é esgotar as possibilidades de cada ingrediente para que nada que foi colhido seja desperdiçado. “Se uma folha cresce além do tamanho ideal para apresentação num prato, vai virar molho, pannacota, sorvete ou um azeite super verde. Há produtos que duram apenas uma semana no menu, mas quem vai ao Lasai pode ter a certeza: estão na sua melhor época”.
Marcelo é português, mas a mãe brasileira nunca se cansou de falar das frutas daqui. Dela, herdou o mesmo encantamento. Comenta que a temporada da lichia é tão curta que muitos chefs têm medo de usar, mas no Lasai, aproveitam enquanto dura. Adora entender as microrregiões do Estado e o que mais lhe encanta é “aqui no Brasil, se descobre novos produtos ‘dia sim, dia sim’, seja um mel de abelhas nativas, um peixe, uma fruta ou um vegetal”.

Foram muitas as vezes que ouviu o Rafa dizer: “Amanhã, trocaremos 100% do menu” mas não se assusta: “Tome um cozinheiro com 15 anos de carreira e compare com outro, de 5. Veja como reagem a trocas diárias. O de 5 ficará nervoso, mas é um amadurecimento que acontece naturalmente. Com o tempo, a gente se habitua. Já aconteceu de desenharmos toda uma sobremesa em torno do ruibarbo e as formigas o destruíram. Acontece.”.
Uma vez concebido o prato, pelo trio, Marcelo garante a padronização técnica na utilização de cada ingrediente.
Com muita calma e imensa paixão pelo trabalho, diz que a equipe do Lasai está habituada a ser criativa diante de qualquer catástrofe. “Se permita a surpresa, porque a única coisa que a gente quer fazer é comida gostosa. Cada produto, mesmo que não tenha um sabor potente, como uma folha de alface ou um chuchu, tem seu valor e vamos tirar o melhor disso.”.
Rafa comenta que o restaurante é algo bem mais simples do que as pessoas acreditam. “Na verdade, é um juntado de bons produtos. O alho-poró está bom? A gente junta. A cebola? A gente junta. Pega a lula fresca que acabou de chegar, e pronto! Se você pegar tudo que está no melhor ponto aquela hora, vai dar certo. Admiro e respeito pessoas que fazem fichas técnicas e pratos mais elaborados, mas aqui é tudo improviso”.

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O amor de Lydia ao se despedir de um ingrediente é o mesmo de Rafa, que tudo devora ao reencontrar a horta. A grande questão é o saber fazer. Em escolher um produto da terra e tirar o melhor dele, mora a genialidade de um cozinheiro. Para mim, ambos são – cada um a seu estilo e tamanho de equipe – gênios na cozinha.
Ontem, o Lasai ganhou a 28ª posição mundial, no ranking dos 50Best. Anteontem, Lydia fez 3 anos de Angá, na casa nova.
Quem celebra ambas as vitórias, felizmente, sou eu, a cada visita.
Viva o Rio.