
O peixe sabe que a menor distância entre mar e prato é todo o tempero que precisa. Ali, eram só vinte passos.
Era pequeno o tal bazuga, de sabor muito presente, gordo. Esqueci a salada, queria o peixe. Esqueci a batata, queria o peixe. Não coloquei azeite, nada. Foi assado, tinha o ponto certo de sal e era isso.

O melhor peixe da minha vida aconteceu em Malta, naquele país de língua difícil que mistura italiano e berbere, numa pequena cidade pesqueira chamada Marsaxlokk.
Sempre que resgato lembranças de viagens, tenho raiva de algum “melhor” que acontece em outro país, orgulhosa do Brasil que sou. Vivo de escrever e de investir no que é daqui, mas precisamos falar de pesca industrial.
Não é fácil trabalhar com peixe fresco. Há que se ter abastecimento regular e muitos pescadores na manga para não haver rupturas na entrega. É claro, isso e espaço de bancada, geladeira dedicada, habilidade e paciência para descamar, lavar, cortar o abdômen da ventresca à cabeça, remover órgãos, limpar cavidades, filetar…
Além do mais, peixe fresco “não é tudo igual”. Vem o que foi pescado, nem sempre o que o cliente quer. O mesmo peixe pode render uma quantidade diferente de filés (ora três, ora cinco) fazendo fios brancos brotarem nas cabeças dos gerentes. Como calcular se rendeu menos por conta de um aproveitamento mal-feito? Como evitar as perdas de porções mal calculadas ou filetadas?
Assim tudo começa… e a pesca industrial vai comendo os restaurantes pelas beiradas.
É muito difícil achar restaurantes que trabalhem com pescados de linha e tratem bem os peixes, mesmo em cidades pesqueiras como Búzios. E foi então que, depois de muita frustração, especialmente nos restaurantes mais badalados da cidade, o jornalista catalão Xavier Agulló me lembrou do Fixi, em Arraial do Cabo, lugar também sugerido pela Lydia Gonzalez, do Angá. Uma casa longe do Rio, mas relativamente perto de Búzios.
Pegamos a estrada no meio de um feriadão engarrafado, por absoluta saudade de peixe fresco. Foi uma hora e meia de viagem, de um caminho que não é particularmente bonito e culmina no portal da cidade de Arraial, de gosto duvidoso. Vencida a ladeira até o restaurante, em que meu carro quase pediu arrego, chegamos.
A construção do restaurante é simples, com jeito de estrutura que foi (e ainda está) crescendo, mas de todas as mesas se avista a paisagem de tirar o fôlego, do alto daquele costão rochoso que se despeja no mar.

Ian Medeiros não é o dono de restaurante típico.
Agradece todos os dias pela infância em Arraial do Cabo, quando as pais alugavam a casa no Verão e a família acampava um mês inteiro na Ilha do Farol ou na Praia do Forno e o almoço e o jantar vinham da pesca submarina feita pelo pai.
Aos 8 anos, já tinha seu próprio arpão. Enquanto o domingo dos outros era “dia de futebol”, para Ian e os irmãos, a farra era a pesca.
Foi bolsista em tempo integral, na PUC, cursando Design de Produto, e achou uma luta sobreviver no Rio, sendo tão simples. Apesar de se sentir – com trocadilho – um peixe fora d’água, convivendo com gente de mais dinheiro, hoje agradece a oportunidade de “fazer um círculo de amizades impensável para um ‘cabista’”.
Servir, pescar e falar de peixes sempre foi sua paixão, daí montar um restaurante com cozinha aberta, só para poder explicar a pesca artesanal, e dali.

Como pescador, Ian confessa que sempre achou tudo estranho. Cansou de ver chefs indo para o Japão para aprender técnicas, coisa e tal, que de nada adiantam se o sujeito que pesca para eles não tem conhecimento e trata mal o bicho. Por isso, não fazia sentido sair de Arraial, uma reserva extrativista marinha que só permite pesca a quem é credenciado. Mesmo sabendo que grande parte dos clientes dali só quer ir ao deck tirar uma foto com um drink, sabia que era o único jeito de estar perto e garantir a qualidade do peixe.
De início, só servia o que ele, o irmão e amigos próximos pescavam. Hoje, são 12 pescadores parceiros, a quem ensinou sobre sangramento, lama de gelo e a técnica do ikejime, aplicada a peixes selecionados. Muito vem da pesca submarina e a alegria é estar junto deles, sempre que pode.
Naquele cantinho paradisíaco, além das espécies costeiras, também aparecem alguns pelágicos (de mar aberto), o que não é comum em outros cantos. O pescador que consegue ir mais longe traz cavala ou dourado, mas os mais constantes, com seus barquinhos menores, trazem peixes costeiros como sargo, robalo, xaréu, tainha, pescada e corvina e, com o mar mais agitado no costão, muitos pampos.
Para Ian, trabalhar com sazonalidade não é questão só de respeito; é sobretudo qualidade. Quem for agora ainda pega o fim da estação das lulas e já vibra com o início da época de tainhas, que aproveita pela carne e suas ovas, preparadas em bottarga ou karasumi.
Ali, no topo do mundo, tudo me parecia meio louco. Em meio à gente de Arraial, feita de famílias e casais, tinha um neozelandês de um projeto ambiental espiando o mar com binóculos, e sendo atendido pela equipe extremamente simpática e bilíngue (coisa difícil de achar).

Comecei com um quibe de cavala, bem denso, com maionese de limão.
Em seguida um crudo de cavala com sal de wasabi, sobre ponzu e óleo de gergelim picante.

Seguimos com um filé de garoupa com dry rub de páprica e pimenta, na brasa, temperado com algas e PANCs do quintal, Vinha com brócolis plantado ali, também salteado na brasa e um purê de batatas com parmesão. Uma delícia.
Seus dry aged são maturados de 7 dias a um mês, dependendo do peixe. O que comi, era de graçainha e vinha com furikake, kimchi, omelete e garum de garoupa.

Seus acompanhamentos são parrudos, nem sempre sutis, não há grandes opções de bebidas, tampouco há sobremesas. O negócio ali é o peixe, e isso me basta.
Paguei, fui até a cozinha e me apresentei.
Encontrei um chef ocupado e constrangido com minha câmera, que não fala mal de ninguém, mas também lamenta o crescimento da pesca industrial, que prejudica a cultura pesqueira. Ian sabe que sua bandeira é difícil de hastear, mas fica feliz com ele mesmo, aplicando as técnicas certas e tirando o melhor de cada peixe, diante do paraíso.
Viva o Fixi.