Se eu contar que tem queijo do Rio de Janeiro entre os melhores do Mundo?
Queijos valencianos: a nova fronteira da qualidade no Brasil
Achava lindo devorar uma fatia de goiabada de lata espremida entre duas outras, de queijo prato, lá pela hora da Sessão da Tarde. Na mesma época, havia um queijo minas duro, velho e rançoso, que fazia estranhos aniversários na geladeira, e ninguém parecia ligar. Vez por outra, havia ainda um “queijo de furos”, que ninguém chamava de ‘suíço’.
Não havia luxo, qualidade ou variedade nos queijos da minha infância – ou, ainda, de qualquer amiguinho que nos frequentasse. E não faz tanto tempo assim…
A lembrança me veio a caminho de Valença, região que sempre associei à cafeicultura e que, de uma hora para outra, viu surgir uma vocação inesperada.
Foi a Abolição da Escravatura que levou a mudanças profundas na região, que já foi a maior exportadora de café do mundo, no séc. XIX, mas mergulhou em franca decadência por conta da falta de mão de obra. A salvação da lavoura, literalmente, era o governo começar a incentivar a vinda de imigrantes estrangeiros.
Na passagem para o século XX, eles vinham de toda parte.
Os dinamarqueses que ali se fixaram, tentaram reproduzir, em 1920, o tradicional queijo Danbo, que deu origem ao ‘queijo prato’ afetivo da infância de todo o País. Ali, também se instalaram imigrantes italianos e portugueses, que levaram suas técnicas e desejos à região.
Fato é que essa turma encontrou em Valença um ambiente ideal. Afinal, além da ilustre participação do animal, do que um queijo é feito? Dos minerais da água, da qualidade do pasto e, também, da terra em que cresce.
Ali, por exemplo, as bactérias propiônicas, que costumam ser compradas para fazer queijos com olhaduras redondas, grandes e regulares (como nos queijos suíços), aparecem espontaneamente na pastagem de Valença graças aos afloramentos rochosos, e… surpresa(!)… se manifestam em furos redondinhos, em alguns queijos maturados.
O tipo de “flor” que recobre os queijos, como um “mofo do bem”, também é outro grande trunfo, capaz de emprestar aromas únicos a cada peça.
Isso tudo é o tal do terroir, que aliado a um crescente investimento em mão de obra e qualidade – especialmente depois da pandemia – tem produzido resultados impressionantes.
DO CAFÉ PARA A PECUÁRIA BOVINA
A cidade é, hoje, a primeira bacia leiteira do Estado do Rio, tanto em volume quanto em qualidade de seus produtos lácteos.
Os números não mentem: no último Concurso de Queijo Artesanal, em São Paulo, entre 1542 produtos de 20 estados, nosso Estado conseguiu 28 medalhas, vindas de 10 queijarias valencianas, sendo duas na categoria máxima: a Super Ouro, com uma banca de juízes de todo o Mundo.
E, ainda, nem nos nossos mais loucos sonhos, acreditaríamos que no último concurso mundial, em Paris, entre os 12 melhores queijos do planeta, havia 10 franceses, 1 suíço e apenas UM não europeu. Sim… era de Valença, Rio de Janeiro.
“O mérito não é meu”, disse Rodrigo do Vale, da queijaria du’Vale, vencedora de inúmeros prêmios. “Que país tem pasto verde o ano inteiro? Vocês viram a capineira, aqui fora? Estou há mais de três meses sem uma gota de chuva e a capineira segue verde! É isso que entra na boca da vaca, que se transforma em leite, que se transforma em queijo. Não é fácil de entender o que faz o melhor queijo do Mundo?”.
Modéstia à parte (do produtor), não é só terroir que conta. O ‘saber fazer’ importa, e muito. Seu tataravô, imigrante português, já fazia queijos maturados, especialmente do tipo “parmeson” (como conta um registro de época), e enviava para outros municípios, em lombo de burro ou pela Maria Fumaça, já em 1910.
Hoje, num processo que melhora a cada geração, as peças envelhecem numa cave subterrânea que mantem a umidade alta, e a temperatura, baixa e constante.
“O queijo é uma criança que conta tudo”, diz Rodrigo. “Qualquer imperfeição pode ser rastreada até origem, ou seja, aquilo que a vaca comeu. É um produto vivo, com organismos que trabalham no dia a dia, transformando seu sabor. Daqui a uma semana, é outro queijo.”.
Nenhuma de suas “crianças” me contou nada, além de boas histórias. Provei o Pérola Negra, (vencedor do prêmio Super Ouro no último concurso nacional), feito de leite cru e maturado por 60 dias na cave de pedra, sobre uma tábua de madeira. Tem sabor intenso, picante, frutado e denso e é coberto com pó de café para manter a umidade.
Mais inesquecíveis, ainda, foram um queijo maturado por 6 meses, com casca bem florida (que implorei que fizesse em maior quantidade), e o requeijão de leite puro, feito à moda antiga, denso e untuoso, ali batizado como creme de queijo.
A verdade é que cheguei à fazenda já com desejo de sobremesa. Afinal, pela primeira vez na história, um doce de leite sai de sua categoria específica numa premiação, e entra no rol dos 5 melhores produtos lácteos do Mundo, entre mais de 2.000 produtos inscritos, com jurados de 20 países.
Sim, é de Valença o título de “Melhor Doce de Leite do Mundo”. Segundo Rodrigo, não há segredo: é o terroir valenciano, leite, açúcar e a paciência de se mexer o produto por 5 horas, num tacho de cobre.
Tive a alegria de sair com dois potes e o infortúnio de vê-los sumir em menos de 24 horas, depois de apresentados à minha família.
DAS VACAS ÀS CABRAS
–
Outro produtor de destaque é Fabrício Vieira, da Capril do Lago; um dentista, filho de outro dentista, que passou a vida em área rural.
Aos 13 anos, pediu uma vaca de presente. Como era grande demais para ele, ganhou uma cabra.
Brotava ali uma paixão que daria origem, em 2023, ao sétimo melhor queijo do Mundo, no Mondial du Fromage, em Paris. Um grande orgulho termos num pódio feito APENAS de queijos europeus, um pecorino valenciano envelhecido por 12 meses.
Fabrício, a quarta geração de criadores de vacas, desde sempre viu o pai, Fabio Vieira, fazer a ordenha às 4 da manhã, almoçar às 11 horas e só depois partir para o trabalho, ritual que cumpre até hoje, aos 75 anos. Seu pai é o único de 9 filhos que manteve a tradição de tirar leite e fazer queijos.
Foi o primeiro da família a se aventurar com cabras e, apenas na pandemia, decidiu fazer disso um negócio. Então, chamou Paulo Henrique Bastos, seu atual mestre-queijeiro, e deram início a uma incessante busca pela qualidade.
Me encantei especialmente com o Mascate, de casca florida e olhaduras perfeitas (viva as bactérias propiônicas!) ou ainda em versão lavada na cachaça. Também achei fantástico o Sapucaia, queijo de massa mole coberto por um tipo de mofo branco que se desenvolve dentro da cuia da árvore da sapucaia, numa maturação de quase dois meses.
São 300 a 400 queijos, diariamente virados, temperados, lavados, vindos de apenas 40 cabras da raça Saanem, além de dois bodes: Fred e Carlos Henrique, o danado capaz de emprenhar 34 cabras em dois dias.
Paulo Henrique, por exemplo, sente falta de cada uma das cabras que morrem ou são vendidas e, também, de cada peça que vê partir depois de ter se dedicado a elas por meses, ou mais que isso… Cada venda é uma despedida porque as coisas são desse tamanho. E ninguém quer aumentar a produção para não perder a qualidade.
Dessas histórias, que só cabem nessa escala, é feito o queijo valenciano.
ENQUANTO O SELO ARTE NÃO VEM…
Toda essa poesia podia (e devia) estar espalhada pelas mesas de todo o Brasil, mas hoje esses excelentes produtores contam apenas com o Selo de Inspeção Municipal, o que significa que só podem vender em Valença.
Apenas na semana em que fiz minha visita, quatro queijarias tiveram de fechar as portas porque o mercado local não dá conta de remunerar o investimento em processos caros ou de escoar toda a produção.
A Rota do Queijo foi uma solução excelente e criativa, levando cerca de 80 visitantes a cada rodada, mas ainda não é suficiente.
Vejo uma luz no fim do túnel, graças ao esforço conjunto de um grupo de pessoas que tem tudo para transformar a região na nova Canastra:
Rafael de Souza Pereira, extensionista da Emater-RJ, que me deu riquíssimas aulas sobre a história, formação e evolução da região; Fábio Vicente, médico veterinário do Serviço de Inspeção Municipal de Produtos de Origem Animal (SIMPOA) de Valença; e Bruna Boaretto Durço, médica veterinária do Programa de Apoio ao Produtor Rural do Centro Universitário de Valença, ajudam a orientar e formar novos produtores e agora estudam o longo processo de obtenção do Selo Arte para que os produtos cheguem até nós.
Tive a sorte de acompanhá-los numa visita a Breno Furtado, da Porco Alado (Friburgo), que contou sobre sua experiência e tirou dúvidas como o único produtor fluminense a conseguir o selo, este ano. Agora é esperar que, antes da virada para 2025, algum deles tenha sucesso.
Já rodei o mundo todo, entrevistei muitos produtores e provei mais queijos do que meus quadris gostariam. Posso afirmar sem medo: Valença não deve nada a ninguém.
Enquanto o Selo Arte não vem, nem bem cheguei e já não vejo a hora de voltar.