Uma tempestade no verão carioca, mas uma chuva que não é passageira
O que seria mais “dito erudito” do que teatro da melhor qualidade que não faz concessões ao "fácil”?
Grande personalidade do teatro, Ariane Mnouchkine afirmou certa vez que “o teatro popular é o teatro do melhor para todos”. Verdade de primeira necessidade nos dias de hoje. E cada vez que essa ou aquela obra não é levada à cena ou tocada seguindo a bravata de que “não atrai público” ou que “precisamos popularizar”, me pergunto: quem dita o que a platéia vai querer assistir. A quem pertence o manual do que tem direito de ser visto? Quem é o dono dessa bola de cristal que sabe adivinhar o que as sensibilidades humanas, tão variadas, hão de gostar? É uma coisa a se ponderar — ainda mais numa coluna que pretende discutir o que é “dito erudito”.
Nada contra os grandes clássicos ou as obras favoritas de todos, que povoam desde sempre a propaganda: imagens de heróis em capa e espada, ao som de canções com melodias conhecidas da ópera italiana ou da ‘espanholada’ Carmen. E há uma linha de interseção entre a mais alta costura e os chapéus tutti-frutti de Carmen Miranda, entre o folclore recolhido pelo húngaro Bela Bartok e as preciosidades que nos trazia uma Clementina de Jesus. Por tudo que leio e escuto, aliás, a mais sofisticada tecnologia só tem feito o maravilhoso espetáculo do Carnaval carioca ainda mais belo. Porém, todas as artes deveriam ter a chance de existir, de serem escutadas. Se há um teatro no Rio de Janeiro que prega esta existência plural e que deixa urrarem vozes menos conhecidas, este é o Teatro Poeira, em Botafogo.
Havia um tempo, há não muito, em que o verão carioca era um deserto cênico. Poucas peças de teatro em cartaz, nada de concertos, óperas e balés; exposições, poucas. Lembro de kombis paradas na praça perto de casa, com ingressos à venda para os melhores espetáculos em cartaz na cidade. Era uma campanha que, se não falha minha memória de adolescente, chama-se “Vá ao teatro”. Como os caras nas kombis faziam para entrar em contato com as bilheterias e dizer que este ou aquele número de ingressos havia sido vendido, não sei — mistérios de um mundo com ‘orelhões’ que desapareceu (só sobrou o bordão “cair a ficha”). Apesar da variedade da oferta cultural do Rio durante os períodos em que há mais turistas na cidade ainda deixar a desejar, muita coisa mudou para melhor. Mais vozes estão sendo ouvidas, isso é certo.
Uma dessas é o monólogo “Lady Tempestade”, sobre a luta de uma corajosa advogada por justiça e direitos humanos, em Pernambuco, durante os primeiros anos da ditadura que seguiu-se ao golpe de 1964. Parafraseando Shakespeare, é um texto que é fúria, com uma direção cheia de som (e coloridos), levada à frente por uma atriz que é uma tempestade. A junção do texto de Silvia Gomez, com a direção de Yara Novaes e a atuação de Andréa Beltrão prova que “democratizar” é antes de mais nada dar acesso ao que há de melhor, ao mais bem feito e até mesmo ao sofisticado. Curiosamente, a luta por justiça e humanidade de Mércia Albuquerque não fica nada a dever a de grande heroínas do teatro e da ópera: Tosca, Elektra, Fedora, Antigona, Mary Stuart são sua irmãs.
A história da advogada pernambucana — uma mulher que mereceria ser nome de medalha, prêmio, rua, praça, lei e sinônimo de coragem feminina não é (infelizmente) nem única nem especialmente ‘original’: há muitos heróis anônimos que lutaram e seguem lutando, seja nos anos 1970, antes ou na Rússia do século XXI. No entanto, a direção de Yara Novaes dá tal virtuosismo ao texto que parece que estamos diante de uma grande heroína trágica do teatro grego. Finalmente, um monólogo que é ‘dirigido’, encenado; que usa de cenário, luz e figurino para propor idéias e dizer também sua opinião sobre o texto e sua história. Ao invés de deixar uma atriz abandonada aos seus próprios talentos, “Lady Tempestade” é uma montagem que mostra-se cúmplice da atriz e usa de todos os recursos racionais (e cênicos!) para convocar também a inteligência do espectador a fazer parte deste ‘jogo’ — e isso sem deixar de fora a emoção, como prova o coup de thêatre final da peça, trazendo à tona tudo que foi varrido para debaixo dos tapetes do silêncio e da impunidade. Com os caminhos livres criados por uma direção inteligente, Andréa Beltrão pode dar voz (e incorporar) toda a emoção de Mércia Albuquerque — ou antes, sua inconformidade e entrega a uma causa que estará acima dos maiores (supostos) símbolos da feminilidade: o amor romântico e o papel de mãe. A atriz entrega-se a tudo que está contido no texto de Silvia Gomez, passando com facilidade para o jogo entre a recriação teatral da luta da advogada e a “realidade” de A. (alterego de Andréa?). Em muitos momentos, a carpintaria inteligente do texto faz lembrar a de autores contemporâneos como Sergio Blanco (de Tráfico, Ira de Narciso e Tebas Land — futura atração do próprio Poeira). Ao fundo, não por coincidência, a Ode à Liberdade da 9a. Sinfonia de Beethoven é trilha sonora recorrente.
“Lady Tempestade” é mais do que fábula moderna sobre justiça, assim como a arte de André Beltrão e Yara Novaes é mais do que a passagem de um sotaque ao outro, da incorporação de personagens que, para uma atriz dessa qualidade, seria fácil como o ato de calçar e despir sapatos. Para quem assistiu a recente Antígona, desenha-se aí um compromisso com o desafio de mostrar a diversidade de histórias muito semelhantes. A irmã que enterra o irmão ou a mãe que arrisca deixar seu filho sozinho, ambas para cumprir um dever maior para com a sociedade, não estão longe de canalizar emoções pessoais; ao lado de Andréa (que em recente entrevista falava da morte do próprio irmão), e no comando de uma inteligente trilha incidental está seu próprio filho, Chico BF. É impossível conter o desejo de deixar falar a brutalidade das ditaduras ou de um diário que exige contar sua história que não pode ser mais soterrada ou “escondida”.
Se hoje não existem mais as kombis ostentando as campanhas de antigamente, ao menos existe Andrea Beltrão em “Lady Tempestade”, gritando para todos em alto e bom som: “Vá ao Teatro!!” –e, quero crer, existe a memória inspiradora e humanizadora de Mércia Albuquerque.
André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio,
é Professor da Escola de Música da UFRJ.