Uma baita herança para o Rio de Janeiro
Diretor comenta a escala épica da peça A Herança, que chega ao Rio para curta temporada
“Proporções Wagnerianas” é um termo que caiu um pouco em desuso. Por um bom tempo significou algo grande, em larga escala. No mesmo pacote vinham também altas emoções e drama — com uma duração igualmente acima do normal. Muitos destes adjetivos servem para descrever a bela jornada de emoções e história proposta pela peça A Herança, em cartaz no Teatro Clara Nunes. Depois de uma elogiada (e premiada) temporada em São Paulo a peça do americano Matthew López está em cartaz nos teatros do Rio de Janeiro; uma parada obrigatória por temas contemporâneos e importantes, defendidos com talento. E atenção que é curta a temporada.
A Herança propõe vários desafios, a começar por juntar em cena um elenco grande e de muitos talentos diferentes. Depois, há a temática do espetáculo que coincide com esse estranho, bizarro momento em que uma minoria conservadora — ou melhor, fundamentalista — pretende questionar direitos constitucionais. Finalmente, a duração do espetáculo: cerca de 7h de espetáculo, divididos em dois dias. Eis aí a tal ‘fórmula wagneriana’. Eu não escrevo criticas, porém gosto de usar este espaço de crônicas para propor ligações entre as artes. Ópera, balé, música de concerto e todo universo dito erudito sofrem muito com esses fantasmas: duração, grandiosidade e suposto elitismo, temática supostamente inacessível etc. Da mesma forma que muita gente pode ser afastada da idéia de assistir a um espetáculo por conta de sua duração; mas o fato é que A Herança arrisca muito, e eu arrisco dizer que ganha quase todas as suas apostas. E quando desmitificamos algo, quando espantamos os fantasmas que muitas vezes impedem que todos os públicos tenham acesso a todas as formas de expressão artistica, investimos nesse ‘risco’ maravilhoso que é o da experiência das artes cênicas. Se uma ópera de Richard Wagner pode facilmente durar 5h (e é melhor nem entrar nas visões de mundo do compositor ou nas recentes associações, na Rússia, com um tal Grupo Wagner), tudo que é ‘wagneriano’ também pode ser traduzido como fruto de um grande desafio, de um investimento fora do comum e de grande coragem e visão.
Obra super atual cujas discussões citam até mesmo a eleição do ex-presidente americano, em 2016, a peça de Matthew López parece retomar e refletir sobre alguns dos temas e discussões iniciadas em outro famoso texto moderno americano, Angels in America. A diferença maior é que o foco desta vez é a comunidade. O espetáculo nos convida a fazer parte da vida de um grupo de homens gays de diferentes gerações. Há o casal mais velho que, pelas minhas contas, deveria estar na casa dos 60 a 70 anos (eram adultos e profissionalmente estabelecidos em meados dos anos 1980); o grupo de amigos na casa dos trinta, o centro da peça; e, finalmente, alguns personagens que acabam de chegar à idade adulta. Essa sensação de grupo é orquestrada com muita delicadeza e inspiração pelo diretor Zé Henrique de Paula, que mantém os 12 atores em cena quase o tempo todo e consegue a proeza de transformar ao público em parte daquela comunidade — uma grande “cavalgada dos Valquírios“, para não perder a paráfrase wagneriana. O cenário é espartano, mínimo, o que faz com que a platéia tenha de oferecer sua imaginação à receita do espetáculo. É uma montagem basicamente clássica, que não se obriga a nenhum clichê de vanguarda; e com isso torna-se particularmente bem sucedida — e moderna. Destacar qualquer momento seria um spoiler, mas é impossível não citar o final da primeira parte: um achado de carpintaria teatral do autor, que a montagem brasileira consegue fazer ser tão emocionante quanto o mesmo trecho da montagem americana (que pode ser visto no Youtube).
No entanto, como num balé ou num ópera nada dessa mágica cênica seria possível sem o fundamental: atores. Destacar um ou outro do grupo de 7 atores em papéis secundários seria injusto com o excelente resultado do grupo, e cada um tem seu momento de brilho. Permito-me uma menção especial, à doce presença da atriz Miriam Mehler, um ícone do teatro paulista, numa mais do bem-vinda e especial participação, na parte 2. Quanto aos cinco protagonistas, vale mencionar os duplos interpretados por André Torquato, um prato cheio para seu notável talento; impossível não destacar a cena em que seus dois personagens conversam e ele passa de uma para outro com virtuosismo. Marco Antônio Pâmio mostra toda sua experiência e maturidade do ator em várias cenas, passeando ele mesmo por vários personagens; na primeira parte, há um longo monólogo que o ator defende com notável doçura. Em termos ‘ditos eruditos’, são momentos de fazer inveja a muita prima dona cantando a ‘grande ária’, de La Traviata, ou grandes bailarinas dividindo-se entre as personalidades de Odette e Odille, em O Lago dos Cisnes. O protagonismo absoluto do espetáculo, no entanto, é dividido palavra a palavra, gesto a gesto e muitos olhares pelas performances de Bruno Fagundes e Rafael Primot — e isso na companhia de tantos bons atores. De um lado, um ator de enorme carisma e delicadeza nos detalhes de interpretação dominando a parte 1 e, do outro lado do ringue da arte, um talento absolutamente arrebatador que vai crescendo e transborda tudo e todos na parte 2. Se a peça fala de comunidade, é nessa parceria que o espetáculo encontra sustentação; o brilho de um em nada diminui o fogo do outro. Ambos defendem seus papéis com tal humor e imaginação que nasce dali uma química que é um prazer de assistir.
Apesar de falar de uma comunidade especifica, A Herança é uma peça para todos. É importante reforçar isso: da mesma forma que qualquer recorte de público pode apreciar um espetáculo sobre os encontros e desencontros de uma senhora da melhor idade, presa num apartamento em Copacabana durante a pandemia, ou identificar-se com as raízes da formação do povo brasileiro pela perspectiva dos escravizados, o bom teatro de A Herança tem a qualidade de atingir a todos — e em proporções wagnerianas, shakespearianas, machadianas, brasilianas…
André Heller-Lopes
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio, é Professor da Escola de Música da UFRJ – @andrehellerlopes