Um mundo de pouca água e muitos sonhos: Rusalka
A ópera do compositor tcheco Dvořák estréia no Theatro Municipal do Rio de Janeiro enquanto uma nova Companhia surge na Lapa
Chegou o meu ‘momento cabotino’ do ano: é hora de falar da ópera que estreio no Theatro Municipal dia 14 de novembro. Desta vez, é meu absoluto prazer poder fazer parte desse ‘esforço de equipe’ que traz ao público do Rio de Janeiro a deslumbrante trama e música da Rusalka, do compositor tcheco Antonín Dvořák.
Falecido há exatos 120 anos, Dvořák foi um dos compositores mais versáteis de seu tempo, sendo autor de diversas óperas e muita musica sinfônica — o maior exemplo talvez seja a super conhecida Sinfonia do Novo Mundo. Não menos popular é a ária do Ato 1 de Rusalka que ficou conhecida como “Canção à Lua”; no entanto, é tanta música nessa ópera de cores Wagnerianas e lirismo Pucciniano (digo apenas para situar o leitor, não como verdade musicológica). E o público do Rio de Janeiro terá um bônus a mais ao escutar a estréia de Rusalka: é a primeira vez que a nova edição crítica será executada na América Latina (nem no MET de Nova Iorque!), e sob a regência do meu caro parceiro de várias aventuras líricas, Luiz Fernando Malheiro. Ele rege o Coro e Orquestra Sinfônica do TMRJ, acompanhado um naipe de solistas brasileiros de primeiro time, reunidos especialmente para esta estréia carioca.
Tenho tido a fortuna de encenar várias estréias ao longo dessas quase três décadas de carreira. Minha primeira grande ópera tanto no Municipal do Rio quanto no de São Paulo aconteceu em 2006, mas eu já tinha então algumas aventuras operísticas na minha algibeira… e sempre tentei falar de novos repertórios, de renovar a tradição como forma de estimular e dar acesso ao público. As obras mais “óbvias”, conhecidas de comerciais de televisão e tal, tem lá seu charme mas o público mudou e não é mais o mesmo do tempo dos nossos avós em que efetivamente existia um repertório popular..hoje tudo está aí para ser descoberto ou, parafraseando o poeta francês Arthur Rimbaud, “reinventado”. Depois do sucesso do ano passado com a super popular “La Traviata“, a Fundação Teatro Municipal confiou a mim e ao Maestro Malheiro o desafio de apresentar uma nova heroína ao Rio de Janeiro,
Contos de fadas e lendas como A Pequena Sereia de Andersen e Undine (Ondina) de La Motte Fouqué são histórias que cativaram a imaginação de seres humanos durante séculos; em suas versões originais eram histórias sombrias, quase violentas – porém a maioria conhece esse contos como narrativas mais açucaradas e infantilizados. Encenar Rusalka em pleno 2024, em países essencialmente diferentes como Espanha e Brasil, é como tentar encontrar uma “abertura” ou passagem mística que reconecte nosso mundo duro e muitas vezes cruel com uma certa esperança mágica das lendas. Apesar de a ideia de circular produções líricas pelo Brasil ou entre nosso país e o exterior seja um sonho antigo, há sempre ai uma aposta arriscada: afinal, o que fez sucesso na ilha vulcânica de Tenerife, pode não traduzir da mesma forma nas praias do Rio de Janeiro. Muito estará em jogo! Explico: a estrutura tradicional da Rusalka conta uma história que se passa em uma floresta de contos de fadas (atos 1 e 3) e no mundo “real” do palácio do príncipe (ato 2). Dentro e ao redor do lago, vivem ninfas da floresta, ondinas, espíritos da água — seres elementares e puros de espírito. No palácio, além da côrte existe uma misteriosa e vingativa ‘princesa’ estrangeira (“Kněžna”, no original). O senhor daquele lugar é um príncipe que, ao contrário da idealização imaginada por Rusalka no ato 1, não passa de homem volúvel e egoísta — um mulherengo, em bom português. Alheia às regras de ambas as sociedades, vive como exilada na floresta também uma feiticeira. Quando estes dois mundos encontram-se, colidem. Para ser vista pelo Príncipe, para transitar de gênero/espécie, Rusalka aceita perde sua voz — que notável curiosidade sendo ela um soprano, uma cantora. Sua incapacidade em usar a fala transmite perfeitamente a incapacidade desses dois mundos para se comunicarem.
É a inversão dessa estrutura — do que é conto de fadas e mundo real — que proponho na encenação que estreou com muito sucesso na Espanha em Março passado e que agora chega ao Theatro Municipal do Rio de Janeiro, graças ao patrocínio da Petrobrás. Preferi tirar a lenda da pequena sereia (ou o conto de Ondina) do fundo das águas (ou do coração das escuras florestas do romantismo alemão) e aproxima-la da realidade, dos bastidores de um teatro. Contar a história de Rusalka, ou melhor, recontá-la: reinventar ou tornar a imaginá-la.. Pergunto: e se invertêssemos a lógica da história? E se víssemos o mundo do príncipe como o da fantasia, do amor ideal (e portanto impossível), e o mundo de Rusalka como o da realidade? Eu queria ver Rusalka como uma pessoa normal, um ser apaixonado como qualquer um de nós pode ficar….sem ser notada pelo objeto de sua paixão. Ou ainda, uma cantora no palco de um teatro ainda vazio, onde vemos uma “floresta” de estantes de música, cadeiras, pequenas luzes e instrumentos. Spoiler: pouco tempo depois de encontrar o príncipe, o amor esfria e Rusalka é trocada por outra. Os amores de “conto de fadas” poucas vezes sobrevivem à vida real. Porém se sofremos com sonhos, é através dele que também nos curamos. Desiludida e traída, a ninfa retorna à sua realidade de ‘após a morte do amor’, agora na forma de um fogo-fátuo. Quanto ao príncipe, herói de lendas no ato 1 e cafajeste misógino no ato 2, ele aparece ao final arrependido; nada mais do que um homem comum, imaturo, cuja breve satisfação sexual assassinou um amor que podia ser verdadeiro. Assim foi meu plano para contar a história de Rusalka, ou melhor, “recontá-la” — reinventar ou tornar a imaginá-la…refletindo sobre o que é “amor ideal” e vendo o conto de fadas com as lentes dos nossos tempos, onde mulheres não precisam de príncipes, e os castelos encantados nada mais são do que uma fantasia.
Somos água que flui, seres que virão a ser — como diria o filósofo pré-socrático Heráclito. Talvez o mundo “real” seja o espaço onde vivemos e fazemos nossas vidas, temos nossas histórias e até aceitamos o lado ‘escuro’ da alma humana. Os rios secando, as florestas queimando e o mundo mergulhado em guerras: nada disso é coisa de conto de fadas. Ainda assim, aqui estamos tentando devolver às nossas vidas algo de Arte, música e beleza como forma de combater a brutalidade. É apostando nisso que trouxe comigo Renato Theobaldo (cenários), Marcelo Marques (figurinos), Gonzalo Cordova (desenho de luz), Derek Pedros (videasta) e Bruno Fernandes e Mateus Dutra (coreografia).
Rusalka acontece nos dia 14/16/22 e 24 de novembro, e tem ainda um espetáculo especial para escolas, antes da estréia, no dia 13. No elenco, nomes de primeira grandeza na ópera do Brasil: Ludmila Bauerfeldt, no papel-titulo, junto com a participação especial de Eliane Coelho, Denise de Freitas, Giovanni Tristacci, Licio Bruno. E vale destacar o elenco alternativo, onde as vozes de Fernanda Schleder e Murilo Neves juntam-se a Paolla Soneghetti, no papel da protagonista, e Tati Helene, como a princesa antagonista — no que promete serem lindas e merecidas estréias em ópera no Municipal do Rio.
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Não podia falar da ‘minha’ ópera sem também chamar a atenção para a bem-vinda estréia da Companhia de Ópera da Lapa, que acontece nesta sexta-feira, dia 8, e no sábado dia 9, na Sala Cecilia Meirelles. Sob a direção do tenor Fernando Portari e com vários artistas do Rio, a nova Cia. apresentará Tosca e Carmen, bem no coração do Rio, onde convivem boemia e tranquilidade, samba… e ópera: a Lapa. Foi alí, numa mesa do tradicional Nova Capela que uniram-se vários artistas e produtores para apostar numa entusiasmada proposta de diversificar a ópera e levar títulos importantes a um público maior. Nas palavras da nova Companhia de Ópera da Lapa: a ópera é o máximo — e eu repito que tudo que é ‘dito erudito’ nada mais é que boa cultura e arte para todos!
André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio,
é Professor da Escola de Música da UFRJ.