Um CD dedicado a Carlos Gomes ou ‘era uma vez’ a cidade da ópera
O dito erudito celebra o lançamento de um CD que tem muito a ver com a história do Rio de Janeiro
Passado, presente e futuro costumam misturar-se com frequência no Rio de Janeiro. Por vezes, mais do que em outras cidades do país graças à essa mistura de natureza e urbano de violenta beleza, de trabalho e plena festa, ordem e ordem ao sol de 40C. Sem bairrismos, não é de hoje que a vida é uma ópera no Rio.
E houve uma época em que esta era uma espécie de Cidade da Ópera, dos pianos e da música em geral. Tanto da mais popular, que trazia em sua alma o coração de todos os povos e regiões que vinham viver na “côrte”, quanto daquela que representava, então, o Europeu — o que a sociedade pensava ser o tal do ‘progresso’ e ‘civilização’. (Infelizmente, muitos esquecem que tanto a música que veio das nossas muitas e ricas raízes africanas quanto a supostamente dita “erudita” — italiana, francesa ou alemã — merecem igualmente levar o estandarte de música brasileira). E tudo acontecia mais ou menos ao redor da atual Praças Tiradentes, nosso ‘Largo do Rossio’ (como era conhecido nas primeiras décadas da Independência do Brasil); o Theatro São Pedro de Alcântara, palco que tantos nomes teve e parecia carregar a maldição de ter sido construído com pedras que seriam destinadas originalmente para um igreja, era o centro de tudo — isso antes de ser (criminosamente) demolido para dar lugar ao atual Teatro João Caetano (que bem merecia, aliás, uma reforma que ao menos lhe devolvesse a fachada Art Deco original…).
Por que embarco em memórias tão distantes? Porque, acreditem ou não, há uma série chamada “Música do Brasil” sendo lançada no exterior pela gravadora Naxos: graças ao interesse deles pela nossa música (ninguém é profeta em sua terra?) e ao esforço do nosso Ministério das Relações Exteriores — a que carinhosamente conhecemos como ‘o Itamaraty’. Milagre de São Expedito ou de São Judas Tadeu? Estou falando do CD inteiramente dedicado à música escrita por Carlos Gomes para suas óperas, brilhantemente defendido pela Filarmônica de Minas sob a regência de um dos mais brilhantes maestros brasileiros, Fábio Mechetti. Enfim, um volume que não poderia estar mais associado a esse Rio de Janeiro que fomos, somos (e seremos?). Neste ponto, o leitor que é rápido no gatilho e já acessou sua enciclopédia virtual predileta estará se perguntando: “Mas Carlos Gomes não era de Campinas? E quase todas essas óperas não foram estreadas na Itália?!” — verdade, pura verdade: mas Gomes ‘veio a existir’ graças tanto ao seu talento de nível internacional quanto ao momento histórico que viveu no Rio de Janeiro dos idos de 1850-1860.
Era uma vez uma cidade cheia de música, mas onde a mesma havia silenciado por longos anos de tumultos políticos. O rei, aliás, o novo Imperador, foi casado com o uma princesa italiana, e com ela aportou na corte um amor pelo Bel Canto. O arranjo para o matrimônio foi talvez o primeiro caso nacional do que hoje em dia se enquadraria na descrição de fotos “fakes”: o retrato enviado mostrava uma moça bonita e esbelta, enquanto que noiva que apareceu para o encontro no porto do Rio, já casada por procuração, era menos esbelta, baixinha e meio coxa. Como num conto de fadas, quem vê cara não vê coração: o Imperador culto encontrou na italiana fisicamente pouco atraente uma Imperatriz igualmente sensível às artes. Isto posto, pulemos desse distante 1843, quando um navio à vapor vindo de Gênova trouxe uma companhia lírica que tomou de assalto a capital do país (e nela a figura de prima donna mais marcante no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX, Augusta Candiani, cantada em versos e prosa por nomes que iam de Castro Alves à Machado de Assis), e aportemos mais de uma década depois, em 1856. Naquele ano ‘estoura’ o movimento em favor da ‘ópera nacional’, cantada em português.
Pode parecer esdrúxulo, mas a primeira tentativa de um episódio lírico cantado em português levado à cena foi uma cantata chamada Véspera dos Guararapes; inserida entre atos (!!) de uma ópera de Verdi ela culminava com o refrão “Nossa esperança está em Bragança”… (anos antes dessa ‘sambópera’ doida, um compositor alemão havia tentando emplacar, sem sucesso, sua ópera nacional Marilia de Itamaracá ou A Donzela da Mangueira…que título!). Na esteira dessa apresentação, graças em grande parte aos esforços — e delírios — de um exilado espanhol, Don José Amat, que nasceu a Imperial Academia de Música e Ópera Nacional. À frente desta companhia ‘à moda brasileira’, Amat contrata alguns jovens músicos e compositores, dentre eles, Carlos Gomes. A história desse espanhol, que chega ao Rio na década de 1840 e que compõe canções, ensina violão e canto, e ainda canta valeria uma crônica à parte. Aqui, vale contar que ele se casa com uma moça da boa sociedade, Luisa, e com estes contatos insere-se na intelectualidade romântica brasileira. Por uns bons anos, a partir de 1857, eles encenam Zarzuelas (comédias musicais ligeiras espanholas, no estilo das operetas) traduzidas e adaptadas para o português (o jovem Machado de Assis foi o autor de algumas), engajando grande parte dos intelectuais e formadora do que reconhecíamos como sendo cultura brasileira e literatura.
Se a primeira ópera em português de autor brasileiro, A Noite de São João, com libreto de José de Alencar e música de Elias Alvares Lobo não teve uma recepção extraordinária nem foi um sucesso exatamente duradouro (talvez porque a platéia não estivesse preparada para escutar violas caipiras na orquestra), foi mais tarde, com a primeira ópera de Carlos Gomes, A Noite do Castelo, que a ópera nacional cumpriu os sonhos da côrte. As expectativas gerais eram de vir à luz um compositor e uma obra à semelhança do que o público daquele distante 1861 esperava como símbolo de sua sofisticação, cultura e progresso: ou seja, uma ópera no estilo de Donizetti — e foi isso que Gomes soube oferecer, mas já com sua assinatura pessoal, como o inspirado solo do oboé registrado no CD comprova. Depois de uma segunda ópera em português, Joana de Flandres, descrita pelo próprio Gomes como um “triunfiasco”, o compositor viaja com bolsa do mover no brasileiro para estudar em Milão. Não é lenda que Carlos Gomes conquistou o lugar de mais bem sucedido compositor lírico não-europeu do século XIX em atividade na Itália. E mais de duas décadas depois, em 1889, foi no Rio de Janeiro que, de volta ao Brasil, o mesmo Gomes estrearia aquela que é tida por muitos como seu ‘manifesto-abolicionista’, “O Escravo” — uma ópera que deveria ser obrigatório encenar-se ao menos a cada dois anos no país.
É justamente o prelúdio da primeira ópera de Gomes, junto com o de sua segunda (e última) ópera em português que mais me chamaram a atenção nesse belo CD. São obras anteriores à ida do compositor à Europa e de seus grandes sucessos com Il Guarany no campo da ópera italiana de seu tempo. Obras como a célebre ‘Protofonia’ que abria “A Hora do Brasil” e a belíssima ‘Alvorada’ da ópera Lo Schiavo estão um pouco no coração de todos, e mesmo assim soam renovadas nesse Cd. Junto delas, trechos das óperas Maria Tudor, Salvador Rosa, o ‘Notturno’ de Condôr e a maravilhosa Fosca fazem deste um disco imperdível numa série mais do que obrigatória de se possuir. Aos que ficaram curiosos, a coleção “Music from Brazil”, da Naxos, já lançou obras essenciais de compositores nossos, muitos deles associados ao nosso Rio de Janeiro: Alberto Nepomuceno, Leopoldo Miguez, Claudio Santoro, Guerra-Peixe, Almeida Prado, Carmargo Guarnieri, além do obrigatório Villa-Lobos e de um surpreendente CD com obras de ninguém menos que D. Pedro I. No forno estão ainda para serem lançados Henrique Alves Mesquita, Lorenzo Fernandez, Francisco Mignone e Edino Krieger, grande compositor que partiu há poucos meses —; Ronaldo Miranda inaugura a mais que bem-vinda participação de compositores vivos na série.
Sim, belisquem-se os que não acreditam que algo culturalmente tão bacana no campo da música de concerto — tão deixada de lado em todos os editais e patrocínios — possa estar tornando-se realidade. Melhor, não apaguem a luz do aeroporto do Galeão porque estamos longe do último a sair (e, aliás, ainda merecemos ter muitos vôos por lá!).
André Heller-Lopes
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio,
é Professor da Escola de Música da UFRJ.