Sexismo e esperanças na ópera
Tentativas de voltar à programação convivem com velhos hábitos no gênero musical
A semana passada foi marcada por verdadeiras lutas internacionais pela reabertura dos teatros líricos. São tantas tentativas — e anti-tentativas — que assunto é o que nao faltaria. Verdadeiras batalhas campais, que vão desde a Ópera de Zurique encenando Boris Godunov, obra que demanda grande participação do coro — desafio em tempos pandêmicos —, protestos de espectadores supostamente aglomerados na galeria do Teatro Real de Madrid, que levaram ao cancelamento da segunda récita de Un Ballo in Maschera, cancelamento de espetáculos de ópera e balé no Bolshoi, — com direito a diva Anna Netrebko hospitalizada com Covid — e a impensável suspensão de todas as atividades do Metropolitan Opera de NY até final de setembro de 2021. Mas, por incrível que pareça, é do sexismo na ópera que eu queria falar no blog de hoje.
Acontece que o destaque da minha semana lírica foi participar de um Fórum civil promovido pelo BRICS, a convite do governo da Rússia. Eles, direto de Moscou, e nós, cada um de seus “home offices” nos cinco países. Usei a ópera para falar de uma perspectiva mais ampla de pontes de cooperação entre os países. A ópera, apesar de dita erudita e elitista, junta teatro, música, artes plásticas, literatura e muitas vezes dança — então nada mais adequado para falar em pluralidade artística. Minha intervenção, “Building BRICS of Culture” fazia um jogo de palavras com “BRICS/Bridges” e a idéia que pontes às vezes são feitas de tijolos (“bricks”, em inglês). Paralelamente, discutia-se em outra sala o papel das mulheres na diplomacia internacional. Precisamos mesmo de mais mulheres na diplomacia pois as guerras parecem sempre uma criação do masculino. Nestes países em guerra, vejo mulheres lutando para tentar costurar os cacos de suas vidas e famílias explodidas.
Na ópera não é diferente. Ainda em um drama centrado num antagonismo feminino, duas rivais como Mary Stuart e Elisabeth I, o que Donizetti (e antes dele Schiller) coloca em cena são duas mulheres presas num jogo de poder masculino — político e amoroso. Se falo de ‘Maria Stuarda’ de é porque de Zurique transmitiram há poucos dias três óperas que estão em cartaz atualmente, graças a um esquema tecnológico bastante ousado e mesmo visionário. No lugar do coro original, poucos atores com máscaras contracenando com os cantores solistas; isso enquanto coro e orquestra executam a música de sala localizada a um quilometro de distância. Tudo ao vivo, com bastante púbico (ainda que reduzido, distanciado e mascarado) e transmitido por fibra ótica. As três óperas ficarão disponíveis ainda alguns dias na página: https://www.opernhaus.ch/spielplan/oper-fuer-alle-digital/. Vale dizer que no Brasil, a Orquestra de Guarulhos deu um banho de iniciativa ao transmitir a ópera “Cavalleria Rusticana”; um concerto gravado ao vivo com solistas e orquestra, enquanto o som do coro estava pré-gravado. Um desafio e tanto que só merece aplausos — e será repetido no sábado dia 03 de outubro, ficando disponível para quem desejar conferir. Há esperanças ou, como dizia Hugo von Hoffmansthal, “onde há vontade, há um caminho.”
Voltando ao papel das mulheres na ópera, há cenários que me dão menos esperanças. Por vezes, é impossível não enxergar o sexismo na ópera. Já no finalzinho dos anos 1970, Catherine Clément presenteou o mundo com um livro que no Brasil traduziu-se como “Ópera ou a derrota da mulheres”. Orgulhosamente feminista, mostrava como em grande parte do repertório lírico tradicional, as mulheres não tinham um final exatamente feliz. Quanto mais transgressora e forte era sua feminilidade, pior o destino — que invariavelmente passava por loucura, suicídio ou, pior, feminicídio. Veladas punições da sociedade para quem se rebela contra os códigos. Tão preocupada em mostrar sua atualidade, a ópera discute muito lentamente o tema propondo visões em que Carmen não se deixa assassinar por Don José ou em que A Flauta Mágica termina com Pamina rebelando-se contra uma clara opressão de um modelo patriarcal (e racista), e optando por voltar para os braços da mãe, a Rainha da Noite (essa foi a minha versão da obra, que encenei em São Paulo no ano de 2017).
Esse ‘outro olhar’ incomoda os cânones da ópera de repertório. Curiosamente, na vida real da industria da ópera (e possivelmente também do teatro e outras artes) a liberdade feminina muitas vezes é taxada de um suposto “não dar-se ao respeito.” Uma cantora lírica que poste fotos suas mais sensuais, ainda que contra luz e vestida, ou aquela que se deixa fotografar fazendo um “pole-dancing” é julgada profissionalmente pelo que seria um comportamento moral adequado “Assim ela não pode querer que os maestros a respeitem”. Como assim? E o que tem uma coisa com a outra? O jogador de futebol que se deixar filmar numa orgia bem ‘comprometedora’, deixará de ser respeitado e ficará de fora da seleção? O que ele ou ela fazem entre quatro paredes não pode afetar o julgamento de sua capacidade profissional. Pior é pensar que outro, suspeito de um crime hediondo de feminicídio, periga virar série de TV. A sociedade tolera e aceita, como aceitamos há um século o antisemitismo de Wagner ou a forma torpe com que o grande Puccini tratava as mulheres, levando ao suicídio de uma empregada. Não ‘esquentamos’ com o absurdo que é isso mas permitimos que a cantora seja julgada, des-respeitada? O problema está nela? Não. Quem não se dá ao respeito é que vê problema nisso e altera seu julgamento profissional. Bem-vindos a ópera do século XXI.
“Agora não é tempo de andar / É tempo de correr, e voar sem parar
Agora não é tempo de tropeços / É tempo de pureza e finura.
Agora não é tempo de murmúrios / É tmepo de inventar, e agir sem indúcias.”
in Poema do Futuro de Armando Arthur.
André Heller-Lopes,
Diretor de óperas e Professor da Escola de Música da UFRJ.