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André Heller-Lopes

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A volta do Dito Erudito
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Rio de Janeiro, cidade dos pianíssimos

O diretor passeia pela história do piano no Rio de Janeiro: ontem, hoje - e amanhã?

Por André Heller-Lopes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 26 abr 2024, 12h27 - Publicado em 26 abr 2024, 12h13
A pianista Linda Bustani com a OSB
A pianista Linda Bustani com a Orquestra Sinfonica Brasileira (Andrea Nestrea/Divulgação)
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A forte presença de pianos na vida musical do Rio, a quantidade de instrumentos que existiam nas casas dos cariocas, já valeram ao Rio de Janeiro o apelido de “Cidade dos pianos”. Nessa semana, no mesmo dia em que os portugueses celebram os 50 anos de sua Revolução dos Cravos, o “25 de abril”, a cidade do Rio de Janeiro bem que poderia dizer que inicia-se uma pequena revolução musical: o Copacabana Palace teve a excelente ideia de abrir as portas de seu belo teatro para uma série inédita cujo nome descreve bem a semana dita erudita: Pianíssimo. Já no sábado (27), uma das maiores pianistas brasileiras, Linda Bustani, apresenta-se junto com a Orquestra Sinfonica Brasileira no Theatro Municipal. Se, em música, o termo “pianissimo”quer dizer um som de extrema delicadeza, bem baixinho, no Rio de Janeiro desses dias as teclas prometem soar forte.

No livro Historia da vida privada no Brasil, uma bem aventurada coleção publicada pela Cia da Letras nos anos 1990s, há todo um desenho de como se formou o Brasil que ainda reconhecemos hoje — para o bem ou para o mal. Naquele Império onde uns poucos criaram o que por muito tempo foi tido como a Cultura Brasileira, a ópera e o piano têm lugar de destaque. Verdade seja dita, a música era um dos elementos fundamentais da alma da então capital brasileira — uma cidade que fazia jus à alcunha de “Bela Cap” ou “Capital Cultural”. Música de todos os géneros brotava da alma do Rio de Janeiro, onde o piano parece ter chegado junto com família real. De fato, teria sido o príncipe regente, Dom João VI, o responsável pelas primeiras notas do instrumentos escutadas pelos carioca (supondo, claro, que antes instrumentos como o cravo dominavam o cenário). Porém, foi no espaço de quase meio século, entre 1808 e 1850, que o instrumento realmente assumiu um papel decisivo na vida musical carioca. Com a popularidade — o termo é bem esse — vieram também os artistas estrangeiros e nacionais, estes últimos dando nascimento a uma elogiada escola brasileira de piano. Não foi por coincidência que o Brasil sempre foi o celeiro de grandes pianistas, e que o Rio de Janeiro, por ser a capital do país, centrava as apresentações de grandes pianistas internacionais.

Em obras fundamentais da história da música no Brasil, como Francisco Manuel da Silva e seu tempo, ou nos muitos periódicos da época, nota-se a força do instrumento na côrte do Império — quase rivalizando, às vezes, com a ópera. Saltando para o século XX, o público mais fiel lembra com uma nostálgica felicidade de memoráveis apresentações de nomes como Claudio Arrau e Arturo Benedetti Michelangeli no Municipal, ou Wilhelm Kempff no Salão Leopoldo Miguez, da Escola de Música da UFRJ (a vida cultural do Rio era intensa, com passagens costumeiras até da Comédie Française ou da companhia do The Old Vic Theatre, de Londres). O Theatro Municipal lotado podia testemunhar grandes concursos internacionais de piano, e de um nível tão alto que certa vez Nelson Freire e Arthur Moreira Lima foram premiados, um atrás do outro; tudo transmitido ao vivo pela Radio MEC. Já os concursos nacionais que vieram no final dos anos 1960s, e que tinham ingressos disputados e estudantes na porta pedindo para entrar, revelaram pianistas como Arnaldo Cohen ou Linda Bustani — a mesma pianista que toca no Municipal neste sábado.

Essa nata de grandes pianistas ‘nascidos’ no Rio de Janeiro — dentre os quais Freire, Moreira Lima, Moura Castro, Eça ou Guedes Barbosa, entre muitos outros— eram ‘filhos’ da cidade contar também com alguns dos mais disputados professores de piano do Brasil: nomes como Lúcia branco, Arnaldo Estrella (de quem Myrian Dauelsberg é sucessora na arte de ensinar) ou, depois, Jacques Klein. Uma curiosidade é que a grande Guiomar Novaes quase nunca deu aulas; morava em NY e vinha mais ao Rio para tocar. Já a mítica Magdalena Tagliaferro, que chegou a dar aulas quando vinha de Paris (o grande maestro Roberto Tibiriçá, que rege concertos para piano com um talento que poucos possuem, foi seu aluno) ia mais para São Paulo. Claro, nem todos os mais destacados pianista foram alunos destes mestres, e nem eles eram os únicos; conto apenas um pouco de uma parte da história — mas é importante dizer, também, que muitos destes artistas, e tantos outros, receberam patrocínio do Governo Brasileiro e de empresários afinados com a cultura para estudarem com importantes professores na Europa e USA, trazendo para o Brasil o que havia de mais atualizado em técnica e interpretação pianística, e colocando o Brasil no topo do cenário musical internacional. Sabia-se, então, que o investimento em todas as expressões culturais gera Cultura num país; e cultura, educação e sociedade andam de mãos dadas.

Foi uma outra época e hoje, se há na pauta do dia está um foco em diversidade que é muito bem-vindo, é fato que há também algo que perdeu-se — e precisa ser recuperado. Onde está nesta importante ‘diversidade‘ o acesso de todos a todos os tipos de música, do popular ao que é dito como erudito? Temos de lembrar que pluralidade e representatividade na cultura inclui, obrigatoriamente, também a música de concerto e todas as formas descritas como “alta arte”. Não se desprezam os clássicos do teatro grego por causa do teatro musical americano, nem se deixa de lado o violão por amor ao violino ou ao cavaquinho. Pode ser repetitivo voltar a esse ponto, mas a abertura de um espaço como o do Teatro do Copacabana Palace para uma série de concertos é ainda mais importante vemos que alguns dos pouquíssimos espaços dedicados à música de câmera, e cuja programação há décadas é inclusiva, ache plausível anunciar o factóide de que em breve terá uma uma suposta programação “para todos”.

Idealizada pelo russo Alexey Gorodnev, o Festival Pianissimo ganhou vida como um diálogo entre música, moda, artes plásticas, arquitetura ou a natureza; o objetivo: criar pontes entre as artes e as pessoas. Na Rússia, os locais mais importantes onde o Pianíssimo ja foi levado foram o Museu Hermitage, em São Petersburgo, o Centro Cultural GES-2, em Moscou, e os Pavilhões Reconstruídos de Nizhniy Novgorod, às margens do rio Volga. O foco são sempre pianistas já famosos entre os profissionais e admiradores do piano mas que iniciam suas carreiras profissionais: artistas jovens como o croata Jan Nikovich que abriu a séria com um recital de tirar o fôlego (mantendo, inclusive, a concentração face aos que insistiam em aplaudir entre os movimentos). O fechamento com chave de ouro da série, que acontece ainda nos dias 26 de abril, 2 e 3 de maio, promete ser o russo Dmitry Shishkin; além de ter sido premiado nos Concursos de Genebra, Chopin e Tchaikovsky,, premiado no Concurso Internacional BNDES de Piano do Rio em 2014. Nos planos futuros, está a participação de brasileiros, como Tales Machado.

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No Brasil e no Rio, com poucas iniciativas e um olhar de ‘suspeita’ para tudo que é dito erudito, a retomada desse lugar de destaque do piano brasileiro no cenário internacional é lenta e inconstante. O Instituto do Piano Brasileiro (IPB), um verdadeiro centro de preservação da memória do instrumento no país, tanto do lado ‘classico’ como do lado ‘popular’, faz um minucioso trabalho que promete ser algo como o Museu do Piano no Brasil.  Por outro lado, escutei de vários pianistas que durante cerca de 4 décadas não tem havido nenhum investimento importante no mapeamento, descoberta e ações para fortalecimento da carreira do jovem pianista brasileiro. No tema diversidade, seria, aliás, especialmente bem-vindo um incentivo à pianistas que venham de setores menos favorecidos da sociedade, ou de recortes como a comunidade afro-brasileira, descer dentes de indígenas ou mesmo LGBTQIA+. Em 2009, com a criação do Concurso Internacional BNDES de Piano, foi possível começar a descobrir uma nova geração do piano brasileiro. Se esse Festival tão importante para o Rio de Janeiro poderá comemorar seus 15 anos em 2024, é uma incógnita. Se não conseguir renovar seu patrocínio, os números significativos de suas conquistas podem acabar num verbete do IPB: 620 participantes de 27 países; doação de 20 pianos para escolas de música, restauro de pianos em várias cidades brasileiras, 15 bolsas de estudos, edição do livro “Guiomar Novaes do Brasil”, itinerância nacional e internacional. Por agora, o mais importante é ir ao Copacabana Palace checar o talento desses jovens pianistas e, mais ainda, ir neste no sábado ao Theatro Municipal aplaudir Linda Bustani e a ‘carioquissima’ Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB) numa versão especial criada em 1926 por E. Torres para a deliciosa obra “Noites nos Jardins de Espanha”, de Manuel de Falla. Não será coincidência que foi a ilustre antecessora de Linda Bustani, a pianista brasileira Guiomar Novaes, a gravar essa obra de maneira tão marcante.

O Elixir do Amor, em cartaz no Theatro Municipal merece todos os aplausos, especialmente, por oferecer ao público de testemunhar a estréia de talentos como os que brilharam nos protagonistas da récita do ultimo domingo: um espetáculo delicioso com artistas jovens e já tão à altura do desafio. E os pianistas? Na música, fala-se que a pausa e o silêncio também são parte da composição. Porém no caso de jovens carreiras que deveriam florescer no Rio de Janeiro, cada “soluço” ou “espasmo” de interrupção pode representar uma geração inteira de jovens pianistas brasileiros que desaparece…em um silencio “pianíssimo“.

André Heller-Lopes, @andrehellerlopes
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio,
é Professor da Escola de Música da UFRJ

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