Requiem para um sonho
O diretor fala sobre alguns concertos recentes e proclama que “o resumo da não-ópera" é: não percam os concertos
Há alguns anos que a música que é dita “erudita” no Rio de Janeiro parece dedicar seu primeiro semestre ao repertório sinfônico. As óperas encenadas acabam ficando para o segundo semestre. Não digo que seja o meu ideal particular de programação que o Rio merece — eu seria a última pessoa do mundo a achar, talvez — mas já que essa realidade é a melhor opção que os teatros e orquestras possuem, vale aproveitar o melhor dela (enquanto os poderes não querem entender que estimular e dar acesso a todos os tipo de música e arte — a tal da “erudita” inclusive — é a melhor materialização da idéia de “diversidade cultural”, “inclusão” e combate ao suposto “elitismo”. Vamos aos fatos.
Um pouco desse “melhor” foi apresentado nestas últimas semanas, e com bastante variedade. As apresentações de música de câmara da Sala Cecília Meirelles, numa temporada anunciada ainda ano passado e que destaca-se no cenário carioca há vários anos, brilham junto com os programas sempre elegantes da série de Concertos Internacionais da Dell’Arte — uma espécie de patrimônio imaterial do Rio de Janeiro. Ao lado destes espetáculos, as apresentações das Orquestra Petrobras Sinfônica, Orquestra Sinfônica Brasileira e da Orquestra do Theatro Municipal têm brilhado de forma ainda mais forte nesse ano. Não sei se os grupos combinaram que repertório iriam executar (o que seria excelente idéia, aliás), mas o fato é que um grande painel da música do Romantismo vem se desenhando recentemente. Com isso, já dá para testemunhar uma renovação de públicos, atraídos talvez pelos programas variados e ricos.
Depois de um excelente programa dedicado a Mahler e R.Strauss, nos estertores do Romantismo, por assim dizer, a Orquestra Petrobras Sinfônica (Opes) foi para o início do período, com Beethoven. Foi uma “Missa Solemnis” como há muito não se escutava no Rio de Janeiro, com um quarteto vocal pra lá de bom, um solo de violino destes que cortam a alma de tão bonito e, muito importante, com muitas vozes jovens no coro. Somente isso já daria uma certa esperança de que, mesmo em meio às dificuldades, a música de concerto terá defensores pelas próximas décadas. Falando em décadas, eu sempre me emociono ao assistir o nosso grande maestro brasileiro reger: foi com o Issac Karabtchevsky que escutei meus primeiros concertos para juventude — ainda adolescente e num Municipal que, então, barrava os jovens que usavam bermudas! Alguém como o Maestro Karabtchevsky é por si só a “cereja do bolo” de qualquer concerto, emprestando uma dignidade e uma tradição especiais a qualquer programa. Possivelmente sentimos com seu jeito de fazer música uma conexão com algo de história e um verniz que não aparecem facilmente. E o mesmo acontece com o soprano Eliane Coelho, cujo fazer musical é sempre uma aula inexplicável. Uma apresentação de Issac ou Eliane vale por ‘maratonar’ a melhor série de “The Crown” ou “Sucession”, com direito aos bônus!
Foi justamente no sábado anterior a Missa de Beethoven que a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal convidou a Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB) para, juntos, celebrarem Berlioz e Wagner; e com eles, nos dois números finais, brilhou Eliane Coelho. Esse tipo de união de orquestras — facilmente comparável a ‘Liga da Justiça’ ou aos ‘Guardiões da Galáxia’, eu diria — é ainda rara: uma pena pois lembro das duas juntas num inesquecível concerto em homenagem ao centenário de Carlos Gomes, num distante 1996. Há algo de belo neste encontros, nestas uniões, e isso gera memórias que levamos para toda a vida. Verdade seja dita, um encontro da OSB com a OSTMRJ, não deve ter sido nada fácil de organizar: é muito mais do que simplesmente fazer limonada com os poucos limões de patrocínio e editais que a música de concerto recebe — merece uma medalha quem consegue programar um concerto assim. São dois titãs de personalidades e vocações artísticas diferentes que, reunidos no mesmo palco, facilmente alcançam um efetivo de uma centena de músicos. E o resultado sonoro, excelente, deve seus louros e elogios à regência de Felipe Prazeres, que domou com muito carisma tantos espíritos artísticos de um só golpe. Se dificuldades existem, as orquestras cariocas continuam conseguindo fazer o milagre nosso de cada dia — e, no caso da OSB, sem ter a sede que lhe foi merecidamente prometida há uma década: a Cidade das Artes na Barra. E outra dessas ‘mágicas’ aconteceu no Requiem de Verdi, espetáculo do próprio Theatro Municipal.
Por uma dessas amargas coincidências, o concerto aconteceu na semana em que a cantora Rita Lee e deputado David Miranda partiram. Além de ser uma das mais importantes obras de Verdi — e de todo repertório coral-sinfônico — o Requiem é uma Missa de Mortos. Quando a obra começou, com a palavra “descanse” foi como se transpuséssemos uma dessas tolas barreiras entre o que é “popular” e o que é dito “erudito” e prestássemos uma inconsciente homenagem a um enorme nome da música nacional e a um dos mais promissores políticos cariocas. Foi muito muito bom escutar esse Requiem, que nada teve de “morto” — e poderia até ser chamado de renascimento: depois de muito tempo a orquestra do Municipal aparecia completa e o coro tinha mais de 80 vozes. Há anos que a Fundação Teatro Municipal do Rio de Janeiro lutava para completar seus quadros artísticos e técnicos; sem eles não há grande programação possível. Agora, com corpos artísticos parta defender a casa, parece que estes “dias de ira” (Dies Irae) ficaram para trás. O motivo primeiro da existência de um teatro de mais de 2000 lugares, um monumento da história do Brasil, é produzir e receber ópera, balé/dança e música de concerto — sua vocação. Não digo ser fechados unicamente a estes gêneros: jamais defenderia excluir qualquer tipo de arte; mas é preciso sempre “recordar” (Recordare) que o Municipal é um dos únicos lugares em todo estado em que existem condições técnicas e acústicas para a execução de um certo tipo de expressão artistica, e que não costuma ser recebida em outros equipamentos. Somente num palco como o do Municipal, da Cidade das Artes (uma vez que o João Caetano e o Villa-Lobos precisam de reformas e reconstrução) e, até certo ponto, ou da Sala Cecilia Meirelles torna-se possível estimular e dar acesso — sim, pretendo ser repetitivo — aquelas formas de expressão artística. Todas as artes são manifestações maravilhosas do espírito humano; porém as que não estão no ‘comercial’ ou ‘pop’ (no sentido de consumo rápido) têm experimentado mais dificuldades em chegar a todos. Com obras como esse Requiem, um teatro faz cultura ser educação, e vice-versa: um Agnus Dei qui tollis peccata mundi (dueto que foi, aliás, talvez o momento mais inspirado da noite graças ao magnetismo do meio-soprano Denise de Freitas). Este Requiem eu dediquei mentalmente à Rita Lee e ao David Miranda, pedindo que uma música tão forte e especial traga a luz eterna para eles; uma luz perpétua que os ilumine.
Como diz aquela música sobre quem não gosta de samba: com preços e variedade de repertório tão convidativos, só não sendo bom sujeito, sendo ruim da cabeça ou doente do pé para não aproveitar a música de concerto no Rio.
André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio, é Professor da Escola de Música da UFRJ.