O Elixir do Amor…em tempos de cólera
O Municipal retoma a programação de óperas, apostando em novos talentos..mas o Brasil ainda luta pelo espaço e acesso de todos as artes ditas eruditas
Pensa numa história fofa. Uma sem grandes dramas, nada de tragédias e com personagens divertidos. Acrescente a esta comédia uma música que flui deliciosa e que, muito provavelmente, você conhece de algum lugar mas não sabe de onde. Eis a receita de uma das mais populares óperas bufas de todo repertório: O Elixir do Amor, de Donizetti, título que abre a temporada 2024 do Theatro Municipal do Rio de Janeiro nesta sexta-feira, dia 19 de abril. Cereja no bolo: dois dias antes, no dia 17, a Orquestra Sinfônica Brasileira – OSB apresenta-se sob a regência de Ira Levin no palco que foi idealizado como sua casa, a Cidade das Artes, num programa que tem o soprano Eliane Coelho como grande atração. O melhor do dito erudito. Depois de duas décadas de ausência, volta aos palcos a ópera onde Nemorino, o tenor, canta a sua famosa “Una furtiva lágrima”. A trama faz jus à brincadeira comum no mundo da ópera, de que os tenores são, digamos, ‘espíritos despreocupados’ e simples; a famosa expressão “testa di tenore”. Nemorino é um camponês sem muita instrução mas carismático e de bom coração; apaixonado por Adina, a dona da propriedade onde trabalha, ele se vê às voltas com um rival que é Sargento e galanteador. Já Adina, além de bonita e rica, tem estudos e define-se como ‘caprichosa’. O caso de amor vai mal até que aparece na cidade Dulcamara, um charlatão que se faz passar por “dottore”, vendendo tônicos milagrosos. Nemorino usa todas as suas economias para comprar o que pensa ser um “elixir do amor”, uma poção mágica, e com isso conquistar Adina. Só que, em verdade, ele compra um vinho e, bêbado, perde toda a timidez…
Estreado em 1832, “L’Elisir d’amore” chegou ao Rio de Janeiro apenas na década seguinte, em 17 de maio de 1844, no Teatro São Pedro de Alcântara (o belo teatro destruído no início do século XX e que ficava onde hoje está o Teatro João Caetano). O ‘atraso’ em estrear no Rio (onde muitas novas óperas italianas eram apresentadas poucos meses depois de sua criação na Europa), deveu-se certamente às crises políticas que o Império enfrentava após a abdicação de D. Pedro I e durante toda Regência. Em 1843, coincidindo com a chegada da Imperatriz Teresa Cristina e seu casamento com D. Pedro II, as óperas voltaram a ser o espetáculo mais popular do Rio de Janeiro. Foi pensando nesse tempo que o diretor Menelick de Carvalho, teve a boa idéia de buscar inspiração no texto da ópera “Le Philtre” (1831), que inspirou a Donizetti e seu libretista.
Com especial experiência na linguagem dos musicais e na formação de artistas para aquele gênero, o diretor e sua parceira Desirré Bastos (professora da Belas Artes da UFRJ que tem assinando cenários e figurinos de óperas) decidiram apostar na ideia de transportar a ação para uma cidade “do País Basco Francês”. Numa época em que ser moderno é ‘patrulhado’ pelos defensores de uma pseudo-vanguarda, dá um certo prazer imaginar que também há artistas buscando oferecer novas leituras sem sentirem obrigados a seguir esta ou aquela estética. Também na busca de criar um lugar idílico do campo, um oásis de vida simples e feliz como nos cadernos de colorir ou nos motivos de estamparia francesa típicos do período, vive o contemporâneo. Nas palavras do diretor “um ambiente que remete aos pequenos teatrinhos de papel, ou aos livros cujas gravuras saltam das páginas”. Da mesma maneira, também o tempo escolhido foi o do libreto francês original: no “século XVIII” — sem deixar de lado o romantismo pós-Revolução Francesa da época de Donizetti e Romani. Nada menos “erudito” ou elitista do que as raízes da popular Commedia Dell’Arte, presentes em quase todas as óperas “buffa” dos séculos XVIII e XIX.
Numa obra de extrema leveza, marcada por suspiros e poesia, uma das coisas mais importantes é justamente a juventude e alegria do elenco. Foi apostando num ótimo grupo de cantores atores que o Theatro Municipal faz sua aposta no sucesso, e todos os artistas nos dois elencos valem uma ou mais visitas à Cinelândia. No entanto, é mais do que isso: ao optar por investir em cantores brasileiros, alguns deles bem jovens, em um título como O Elixir do Amor, o Municipal cumpre uma importante — essencial — função no desenvolvimento e no acesso à ópera no Rio e no Brasil. É a retomada não somente do projeto de investimento em artistas nacionais, tão ameaçados com a pandemia, como de uma certa ‘tradição’ que o Rio de Janeiro carregava nos anos de ouro da ópera na cidade, quando nomes como Paulo Fortes, Ida Miccolis, Diva Pieranti, Clara Marisi, Maria Henriques, Assis Pacheco, Alfredo Colossimo, Lourival Braga ,Gloria Queiroz, Aracy Bellas Campos, Guilherme Damiano brigavam nos “quadros nacionais” — e estou citando apenas uma quantidade minima de nomes que me vieram à mente.
Para embriagar o público com seu elixir do amor, com a regência de Felipe Prazeres, o Municipal convocou dois elencos de artistas brasileiros: Anibal Mancini e Guilherme Moreira (Nemorino), Michele Menezes e Carolina Morel (Adina), Vinicius Atique e Santiago Villalba (Belcore), Savio Sperandio e Murilo Neves (Ducalmara) e Fernanda Schleder (Gianetta). Assim, é especialmente importante destacar dois jovens artistas cariocas que protagonizam a ópera, cada qual em um elenco e cercados de ótimos colegas: Michele Menezes, a Adina do elenco de estréia, e o tenor Guilhermes Moreira, no elenco que alterna. Ambos são cria da Escola de Música da UFRJ, onde começaram a ser descobertos e ganharam as primeira oportunidades de destaque. Guilherme é um tenor de 28 anos, que sempre gostou de cantar, desde a infância nos bairros de Piedade e Madureira. Graças às aulas de música gratuitas em Quintino, pôde fazer aulas de canto; sempre pensando em cantar popular como “Fat Family, Whitney, Aretha, e outros artistas de R&B e Gospel“, revela o hoje tenor solista do Municipal do Rio. Depois veio a graduação em Música na UFRJ, a participação na Academia Bidu Sayão, que existiu no Theatro Municipal entre 2015 e 2017: nesse ano, durante uma série de Masterclasses do preparador britânico David Gowland, diretor do projeto de jovens artistas da Royal Opera House de Londres, o jovem tenor chamou a atenção, chegando a ser proposto que fosse estudar no Reino Unido — mesmo sucesso que teve quando o preparador voltou ao Rio ano passado para uma nova série de “masterclasses” oferecida pelo Municipal. Trajetória parecida, com lutas e conquistas teve Michele Menezes, soprano que canta o principal papel feminino no elenco de estréia. Esta Adina, carioca de Santa Teresa, começou a estudar música aos 9 anos; ao mesmo tempo que estudava violino na Escola de música Villa Lobo, cantava no coro infantil da UFRJ. O começo precoce, graças ao incentivo da mãe, apaixonada pelas artes, rendeu à Michele um começo igualmente cedo como é testemunha seu currículo com passagens como solista, por exemplo, pelo Festival Amazonas de Opera, assim como por várias orquestras pelo Brasil afora. Os recentes sucessos no palco do Municipal carioca (como a protagonista de La Traviata ou Frasquita, em Carmen) não são novidade para o jovem soprano: muito antes de destacar-se como solista de Carmina Burana, em 2017, Michele já cantava no coro infantil do Municipal em óperas como Carmen e A Flauta Mágica, onde também foi um dos gênios. Motivos não faltam para o Rio de Janeiro vir aplaudir esse dois — e todos os seus colegas solistas, assim como o Coro e Orquestra do Theatro Municipal, que retoma a programação de óperas já no primeiro semestre, tradição que vinha ficando cada vez mais difícil, com os eternos desafios de orçamento, e que havia sido interrompida com a pandemia. Ópera à carioca, sem tragédias. O Elixir do Amor estréia no dia 19 de abril e fica em cartaz até dia 28, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. No momento em que o Brasil perde seu mais importante festival de ópera e algumas das melhores orquestras do país tem de lutar por patrocínios e por seus espaços, o retorno de ópera ao primeiro do Municipal do Rio traz um certo alívio Uma boa notícia que torna-se ainda melhor pelo fato de que desde 2020 o teatro não conseguia apresentar óperas no seu primeiro semestre. Agora, há uma temporada anunciada até o final do ano, e com um projeto claro que aposta em títulos populares de ópera, balé e música de concerto, num claro esforço no sentido de garantir que mais gente tenha acesso a todos os tipos de música, do ‘pop’ que fascinava o menino que queria cantar ao ao efeito hipnótico que o jovem tenor sentiu quando, aos 15 anos, escutou o efeito da voz de uma cantora lirica. Foi essa voz assim como a possibilidade de estudar violino e cantar em coros infantis que ganharam as vozes de Michele e Guilherme para ópera.
André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio,
é Professor da Escola de Música da UFRJ.