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Por André Heller-Lopes, diretor de ópera
A volta do Dito Erudito
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No carnaval ou na arte, a verdade pede passagem

Um texto para questionar verdades e mentiras, e buscar um mundo onde não haja bem ou mal, erudito ou popular

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12 Maio 2022, 16h52

“É a mentira muitas vezes repetida”, escrevia Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropófago. É curioso que nesse ano do centenário da Semana de Arte de Moderna de 1922, na retomada dos desfiles de Escolas de Samba do Rio, a Grande Rio, a campeã, tenha escolhido como tema a figura de Exu. Assim como a ópera e grande parte das artes ‘ditas eruditas’ brigam para mostrar seu lugar não-elitista longe do binarismo de “antigo” ou “moderno”, “clássico” ou “popular”, o Exu revelado pela Grande Rio é em verdade um mensageiro que foge do maniqueísmo de bem e mal. Este é o centro do debate — e desta coluna.

Vamos por etapas: já escrevi muitas vezes sobre como a ópera, balé ou música de concerto são ‘demonizadas’ com a pecha de “elitista” — com Exu, cantando pela Grande Rio no desfile das escolas de samba, passa algo parecido. Quando pensei em escrever esta coluna fui saber mais sobre o tema com a amiga de longa data e antropóloga Luena Nunes Pereira, Professora de UFRRJ. No breve período que flertei com as Ciências Sociais, antes de entrar de cabeça na Música, estagiei no então Centro de Estudos Afro Asiáticos; lá, meu chefe era o brilhante personagem do Professor José Maria Nunes Pereira, um dos maiores africanista que o Brasil conheceu. Posso não ter virado um diplomata, mas ali mudou meu entendimento de África e Brasil — e começou uma paixão pela literatura daquele continente.

A questão da perseguição às religiões de matriz africana e indígena é conhecida. O processo de colonização confunde-se com o de diabolização do que era tido como selvagem, primitivo, sexual ou simplesmente ameaçava de alguma forma um pensamento que divida o mundo entre bem ou mal, céu e terra/inferno; são uma forma de redução, assim como o conceito de pecado. Tenha sido intencionalmente ou por incompreensão do pensamento religioso do outro, foi o que aconteceu em 522 anos de Brasil. A cosmologia Iorubá não é maniqueísta e o personagem é naturalmente ambíguo — desafiando perigosamente algumas das bases do nosso pensamento moral. Se pensarmos com cuidado, as raízes do anti-semitismo europeu não passam muito longe dessa incompreensão com o outro e sua religiosidade (ou forma de perceber o mundo). Esquecemos que o próprio demônio cristão é, em algumas versões, um anjo caído; que o Golem da tradição mística do judaísmo é trazido à vida através de um processo divino (e como o Adão bíblico, o Golem é igualmente criado a partir da lama). A figura desse ‘mostro’ que ganha vida ao ter introduzido dentro de si um papel escrito com um dos nomes de D’us (ou da “verdade”), é igualmente ambíguo. Essa dualidade de bem e mal é o centro da figura de Exu que, com a mesma poesia das tradições judaico-cristãs diz que “matou um pássaro ontem, com a pedra que só jogou hoje.” No culto de Orixás (para citar uma das linhas das religiões afro-brasileiras) Exu é o mensageiro que faz a ponte entre deuses e homens, e está associado à “passagem”, habita no espaço onde nada é totalmente uma coisa ou outras — assim como nada mais hoje em dia é totalmente erudito ou popular.
O mesmo processo, guardadas as devidas proporções, aconteceu com a arte “clássica”. Após dominar a cena cultural brasileira durante os séculos 18 e, especialmente, 19, a cultura européia perdeu sua hegemonia e grande parte do protagonismo. Num primeiro momento, a busca de algo ‘nacional’ era essencialmente a tradução do estrangeiro em termos locais, criando algo que confundia brasileiro com “à moda brasileira” — o Guarani, romance ou ópera, traz personagens clássicos vestidos de cocar e penas. Depois, foi a vez de uma cultura verdadeiramente popular tomar as rédeas, ao mesmo tempo que o ‘pop’ (americano) impunha-se no mercado, estranhamente disfarçado de algo dito popular; sem querer fugir da inevitável globalização, vai uma grande diferença entre cultura popular e cultura de massas. O resumo da ópera é esse.

Há, sim, um gesto de auto-proteção que o excluído toma para si. O Exu ‘aceita’ ser visto como essa força do mal, demoníaca, porque o medo causa (certo) respeito. Ao aceitar ser ‘erudita’, a música ou a ópera pretendeu ganhar a vantagem de ser algo “exclusivo”, para poucos eleitos: acreditou que encerrando-se em seu castelo de princesa de gelo estaria acima do bem e do mal, defendida por uma elite endinheirada. Aos tolos que apostaram (e ainda apostam!) neste modelo falido, ofereço a visão das platéias cada vez mais vazias, dos orçamentos públicos cada vez menores e de espetáculos ou artistas que distorcem o gênero em patéticos pastiches do que ele seria. Bastaria olhar o exemplo dos teatros mais bem sucedidos na Europa e América do Norte, com seus bem pensados programas educacionais e sólido investimento em talento local (em alguns casos desde os anos 1950); se mesmo aí há constantes desafios para renovar platéias, imagine-se aqui onde muitos esperam achar um pote de ouro no final do arco-íris.

A arte sempre pede passagem; pede passagem contra mentira. A escola de samba Grande Rio assumiu que Exu guarda dentro de si o sim e o não, mostrando-o de forma positiva. Para muitos, como eu, foi uma revelação. Cada vez que um grande concerto ao ar livre lota a praia, uma ópera leva milhares de pessoas a um parque ou que récitas gratuitas lotam teatros históricos, percebemos que vivíamos numa mentira de pernas longas que quer fazer crer na impopularidade de uma forma de arte (e talvez porque essa também não esteja associada à cultura de massa ou grandes mercados…). Muito mais sério e destrutivo, claro, é o racismo estrutural da nossa sociedade que ainda liga uma divindade a alguma forma de maldade simplesmente pela cor de sua pele ou origem. Mentiras são algo tão covarde que arriscam desafiar até mesmo algo que é um elo entre a terra e o divino. A vitória da Grande Rio foi a do autoconhecimento.

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E você, já foi recentemente à ópera, ao balé ou a um concerto? Ou apenas supõe que seja algo caro, estranho, que não pertence à cultura — ou simplesmente não conhece e não gosta? Laroyê!

 

André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio,
é Professor da Escola de Música da UFRJ.

 

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