Fortes memórias de outros tempos: 100 anos de um carioca na ópera
O diretor celebra o centenário do grande Paulo Fortes com um passeio pela memória carioca
Escrever sobre Paulo Fortes, o famoso barítono carioca, é falar desse Rio de Janeiro pelo qual as gerações passadas (ou mesmo a “jeunesse dorée” carioca de outrora) suspiram. Porém, não é só um mergulho na nostalgia do Rio capital federal: é também voltar a falar de uma cidade que olhava e acreditava no seu futuro.
Passaram-se 26 anos desde que a presença física do grande cantor nos deixou. Será que as novas gerações de cantores líricos sabem quem foi esse baita artista? Como estará hoje em dia a grande popularidade que Paulo Fortes construiu não somente na ópera como também na TV, teatro de prosa, rádio e cinema? Sim, foi um artista multimídia antes dela existir. E eis que chegamos a este 07 de fevereiro de 2023, centenário de nascimento de Paulo Fortes: nesta próxima terça-feira, memória e tempo, coisas tão curiosas e únicas, unem-se para celebrar esse que foi muito mais do que um cantor lírico.
Escutei e vivi histórias com Paulo Fortes: tive a sorte de escutar “ô garoto” — como às vezes me chamava — e, melhor ainda, escutar a verdadeiramente linda voz que tinha, perfeitamente conservada ainda com 70 anos. Da última vez que nos vimos, num concerto em homenagem a Carlos Gomes do qual deveria participar mas que acabou declinando, ante a minha surpresa dele estar ali numa frisa ao invés de no palco, ele respondeu: “porque quero cantar na minha missa de sétimo dia, garoto!”. Era assim seu humor. Certa vez, ensaiávamos uma cena de Ping, Pang e Pong, da ópera Turandot, quando resolvi que era melhor tentar cantar de forma ‘mais falada’ uma parte que era muito grave para mim. Mal acabei e escuto a voz impostada do “velho” dizendo: “ô garoto, agora você falou mais que Mussolini na campanha da Itália.” De todas as histórias que gostava de contar, guardo uma como a mais poética: dizia que quando jovem, ele e mais uns amigos retiraram a estátua de Chopin que ficava em frente ao Municipal, substituindo-a pela do nosso Carlos Gomes (hoje, na lateral do Theatro); perguntado sobre o destino do músico polonês, dizia: “deixamos ele ali na Urca, para ficar olhando o mar enquanto espera um barco levar para terra dele, garoto.” Já diz o ditado que “se non è vero, è ben trovato” — verdade mesmo, incontestável, era o carinho do barítono pela ópera brasileira e seus compositores.
E Paulo contava e anotava tudo. Num caderno, colecionava números; quantas vezes fez esse ou aquele papel, quantas récitas cantou em qual teatro (até hoje, é o artista que mais vezes apresentou-se no palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro). Tinha tudo escrito à mão, com uma caligrafia de dar inveja a príncipes. Um pouco desse personagem e dessa voz pode ser conhecido num livro chamado “Um brasileiro na ópera” e em diversas gravações que o Youtube tem a felicidade de guardar.
Enquanto que o centenário de Maria Callas será ampla e internacionalmente festejado, assim como o da espanhola Vitoria de los Angeles, ou até mesmo os 60 anos de morte do compositor francês Poulenc ou os 110 anos do Italiano Verdi, os 110 de nascimento de Britten ou 210 de Wagner, temo que homenagens ao “velho” serão mais modestas. Uma injustiça, especialmente no Rio de Janeiro. O carioquíssimo Paulo Fortes foi uma espécie de ‘Cometa verde’ da ópera brasileira, que cabe a nós não deixar que passem mais 50mil anos até outro aparecer.
André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio,
é Professor da Escola de Música da UFRJ