E agora, Rio de Janeiro, onde estão teus festivais eruditos?
Eventos em Belém, Manaus e Ouro Preto poderiam inspirar a lendária capital cultural do país, que ainda por cima tem a maior vocação para eventos ao ar livre
Por toda parte, parece que está a aberta uma ‘temporada de festivais’. Não faltam opções de rock, pop, teatro, cinema e afins…mas, no caso do Rio de Janeiro, “cadê” o espaço (e investimento) no dito erudito? Lendária “capital cultural” do Brasil, parece que “a noite esfriou,/ o dia não veio, /o bonde não veio, /o riso não veio, /não veio a utopia/ e tudo acabou / e tudo fugiu /e tudo mofou…” — diria o poeta Carlos Drummond, sentado na Praia de Copacabana e com medo de ter mais um par de óculos roubados. E talvez ainda completasse: “A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou” — e agora Rio de Janeiro? Se há um momento propício para pensar num Rio de Janeiro “capital internacional de cultura”, é agora, em que há paz e parceria entre as instâncias municipal e federal.
Observemos o panorama nacional. Somente neste mês de setembro, quem for a São Paulo tem farta seleção musical no “The Town”; rumando mais ao Sul, há o excelente e tradicional “Porto Alegre em Cena”. Em julho passado, Manaus teve seu tradicional Festival de Jazz. São apenas exemplos pontuais, e não é no campo do ‘pop’ que está o calcanhar de aquiles da cidade maravilhosa. O escritor Arthur da Távola, quando foi secretário de governo do Rio, mudou o nome da sua secretaria para “daS culturaS”. Lembrar que todas as formas de expressão cultural merecem uma chance e que o acesso à toda uma série de expressões da cultura – que não estão no dito “mainstream” das grandes mídias – é mais do que justo…
No campo erudito, enquanto São Paulo recebe o Festival Chopin (parceria com o instituto que leva o nome do compositor, em Varsóvia), a vizinha Guarulhos ensaia nada menos que três óperas em um ato (inclusive uma raríssima Chapeuzinho Vermelho russa), com foco na diversidade de linguagens. Ao mesmo tempo, o Festival de Ópera do Theatro da Paz, no Pará, ensaia um título do Bel Canto Italiano e acaba de encenar O Menino Maluquinho, de Ernani Aguiar e Ziraldo. Parte de um “corredor lírico” no Norte do Brasil, esta ópera infantil (de um compositor, aliás, petropolitano) é remontagem de um espetáculo original do mais importante festival do gênero ‘dito erudito’ da América Latina: o Festival Amazonas de Ópera (FAO). Aliás, para comemorar seus 25 anos de existência, o festival recebeu em Maio passado a conferência anual da Opera Latino América, pela primeira vez no Brasil. Ainda nesse setembro, Vitória renova sua tradição com o Festival de Música Erudita do Espírito Santo; focado em obras do século XX e XXI. No mesmo mês, a cidade mineira de Tiradentes faz o Festival Vertentes; ainda mais importante, no ano passado, Ouro Preto recebeu seu primeiro Festival de Ópera (ocupando a Casa da Ópera, primeiro teatro da América do Sul, fundado em 1770), combinando títulos tradicionais, históricos e uma obra brasileira. Há poucos meses, a charmosa Jacareí recebeu a vigésima edição do Concurso Maria Callas, evento de reconhecimento internacional. E a lista não para por ai: ou antes, está bem parada…no Rio de Janeiro.
E agora, Rio de Janeiro? /Se você gritasse, se você gemesse, se você tocasse a valsa vienense ?
A grosso modo, o único Concurso Internacional de Piano do Rio de Janeiro foi em 1957 (quando Nelson Freire, então com 13 anos, ganhou das mãos do presidente Juscelino Kubitschek uma bolsa para estudar em Viena). Quatro décadas se passaram sem nenhum concurso do gênero na cidade, até que o BNDES criou seu Concurso Internacional de Piano. Mais de 150 jovens pianistas de 37 países se apresentaram no Rio até 2016; com o nome de Festival Internacional de Piano, o concurso retornou ano passado, e uma nova edição deve acontecer em outubro próximo. Já o Concurso Internacional de Canto do Rio de Janeiro, tão célebre a partir dos anos 1960, deixou de existir no meio da década de 90. Tentativas isoladas de dar um concurso de canto ao Rio foram tentadas pelo Theatro Municipal e pela Escola de Música da UFRJ mas, apesar do sucesso, não conseguiram passar da primeira edição. Graças aos esforços dos herdeiros musicais do compositor e gestor Edino Krieger, resiste bravamente a Bienal de Música Contemporânea. No início dos anos 1980, uma apresentação de Aida, dirigida por Sonja Frisell, e dentro do projeto Aquarius, capitaneado pelo maestro Karabtchevsky e por Dalal Achcar, levou milhares de pessoas à Quinta da Boa Vista. Há exatos 30 anos, a boa ideia de se fazer ópera na Praça da Apoteose, aposta do então Prefeito Cesar Maia, apesar de ter rendido um segundo título ainda na Sapucaí e outro num shopping da Barra, acabou naufragando graças às trapalhadas e escolhas infelizes de uma direção inexperiente e despreparada para comandar algo tão gigantesco.
Parece incompreensível que uma cidade como o Rio de Janeiro nunca tenha conseguido emplacar festivais de música “erudita”, ainda mais ao ar livre. E, no entanto, temos a maior vocação para esse tipo de eventos, e que ajudariam a veicular internacionalmente ainda mais o nome do Rio de Janeiro. O sucesso é comprovado tanto pelas experiências do passado quanto por aventuras mais recentes: em 2012 e 2013, consegui que o Parque Lage recebesse óperas ao ar livre, e o resultado chegou a mais de 5.000 pessoas lotando os jardins da Escola de Artes Visuais.
Mas há esperança — ufa! — e isto é o que motivou este texto! Numa mesma semana teremos o primeiro Festival Oficina de Ópera, no Theatro Municipal, e o mais do que bem-vindo retorno do Festival Ópera na Tela, no Parque Lage. Com a proposta de mostrar ao longo de dez dias espetáculos filmados de ópera e balé, mas numa experiência de grande conforto, excelente som e imagem, como uma sala de cinema ao ar livre em meio ao cenário idílico do Parque Lage, o Festival Ópera na Tela chega à sua sétima edição. Em comum como o Festival do Municipal, defende a “democratização do acesso à ópera” e a ideia de tentar tornar o gênero ainda mais popular através de eventos marcados por certa ‘informalidade carioca’ e uma programação de excelência. Se filmagens ou “streamings” são ainda uma relativa novidade, e geram polêmica, é clara a vantagem de termos acesso a espetáculos internacionais quando não vivemos numa grande capital europeia — e o Ópera na Tela prova isso, e muito bem. No entanto, em recente entrevista ao The Times, o badalado diretor Barrie Kosky declarou que as transmissões eram “um desastre” e que “deveriam ser desencorajadas” – uma afirmação mais fácil de fazer quando se mora em Londres ou Berlin.
Mas, claro, a experiência ideal é sempre aquela ao vivo: vozes, cena, som da orquestra e mesmo a impalpável energia do momento único. Este é um diferencial do Festival proposto pelo Municipal, cujo objetivo central é a formação de equipes criativas para a ópera no Rio de Janeiro, produzindo três espetáculos ao mesmo tempo: destaque para uma das mais divertidas óperas brasileiras contemporâneas, O Caixeiro da Taverna (de Guilherme Bernstein, sob o texto clássico de Martins Pena), e para I Pagliacci (um clássico maior do verismo, composta por Leoncavallo), que conta com a direção de Menelick de Carvalo e tem a excelente ideia de contar com a participação dos artistas do UNICIRCO, do ator Marcos Frota; completa o trio uma homenagem à invenção do rádio e ao surgimento da rádio MEC no Brasil, entrelaçada pela opereta A Noiva do Condutor (de Noel Rosa).
Há, portanto, esperança! E ainda mais que termos na cidade um equipamento único como a Cidade das Artes, com condições acústicas ideias para a ópera e música de concerto e, agora, começa a ser reformado o lindo espaço do Automóvel Clube, ao lado da Escola de Música da UFRJ. Assim sendo, permita-me, Drummond: “…se você dormisse, se você cansasse, se você morresse…Mas você não morre: você é duro, Rio de Janeiro!”
André Heller-Lopes
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio,
é Professor da Escola de Música da UFRJ.