Dois Giovannis e uma cidade
Triste realidade coloca frente a frente o Giovanni de Mozart e abusadores do nosso tempo
Na ópera de Mozart em cartaz no Municipal esta semana, há 8 personagens em busca de punição — e eis que uma ópera de 1787, de repente, faz todo sentido na atualidade: por trás do mito do “sedutor” e do “libertino” está um homem rico e perverso, cuja masculinidade intoxica todos à sua volta. Um caminho de destruição que termina com a frase “esse é o fim de quem faz o mal”, mas que de afirmação, facilmente, poderia virar pergunta em nossos dias.
Afinal, estamos diante de um dos monumentos da música e uma centena de formas haverá para encenar esta obra; seus caminhos e labirintos estão abertos desde a descrição “drama jocoso”, na capa da partitura. Queria dividir com o leitor um pouco das idéias por trás da criação de uma nova montagem para esta obra-prima da cultura ocidental. A minha história com Giovanni começa há décadas: já abordei a obra de várias formas e, da última vez que dirigi Don Giovanni, na Polônia, inseri os personagens no universo de um asilo de lunáticos que flertava com a obra do nosso Bispo do Rosário (um pouco inspirado em outro espetáculo meu, de 2013, para a ópera Ça Ira, de Roger Waters).
Acontece que dessa vez, à luz do mundo pós pandemia, quis olhar o personagem-título de forma diferente. Certamente, em 2022 e com todas as mudanças sociais e comportamentais que atravessamos, não é mais possível olhar para o Don Juan simplesmente como um “adorável sedutor”. É verdade, há Giovannis de todas as formas; alguns menos perigosos. Os ‘menos piores’ são aqueles narcisistas que precisam estar sempre seduzindo e escutando a própria voz dizer “te amo“; mudam de ‘amor’ à medida que não conseguem encarar a própria imaturidade – ou aridez? – emocional. Porém, não há desculpa: seja no século XVII, de Molière (uma das fontes literárias de Lorenzo da Ponte), na era clássica e iluminista de Mozart ou já em nosso tempo, estamos diante de um predador — e dos perigosos.
A ideia de “personagem-titulo” engana: não é uma ópera centrada num único protagonista e, sim, num conjunto de primeiras figuras. São 8 personagens em busca de seu destino e da punição que está no subtítulo da ópera: “Il dissoluto punito”. Cada um dos solistas carrega sua culpa, em maior ou menor nível. Assim, o espaço cênico é uma espécie de purgatório onde buscam solucionar suas questões: por isso, e pela ligação com a obra de Molière (Dom Juan, cujo título é referência ao Dominus, com M, da religião), a encenação foi ambientada num labirinto de imagens retiradas da famosa Catedral de Sevilha — cidade onde se passa originalmente a ópera.
Dos personagens masculinos, Leoporello é um irmão bastardo nascido sem os privilégios que faz com que todos curvem-se ao nobre e deixem as migalhas para o seu servo; Don Ottavio só entende a vida pelas formas e burocracias das leis, a perpetuação do poder pátrio; Masetto, é um touro domado e ciumento. Das mulheres, as vítimas mais evidentes da masculinidade obsessiva e destrutiva de Don Giovanni, Donna Anna é passado, Donna Elvira é presente e Zerlina, futuro. Primeira mulher a aparecer em cena, Anna, quase violentada por Giovanni, culpa-se por ter causado a morte do próprio pai num típico caso da tortura moral imposta às mulheres vítimas de violência e que vêem-se transformadas em culpadas. Elvira é movida pela paixão e pelo orgulho que a faz rejeitar o papel de mulher abandonada e o verdadeiro mau caráter de Don Giovanni; está presa na crença viva de que poderá reconquistar ou redimir o libertino. Finalmente, Zerlina é o futuro; noiva às vésperas de seu casamento a quem Don Juan tenta enganar, é a única não nobre das três mulheres e está à frente de seu tempo, pois toma as rédeas do seu destino.
É nesse momento que a atualidade da obra bate à nossa porta — ou melhor, nos esmurra o estômago: enquanto que para o Don Giovanni da ópera a simples posse da mulher deixou de ser o meio de satisfazer a sua sensualidade para passar a se tornar um ato de ironia sacrílega, um outro Giovanni aparece nas páginas policias. Por triste coincidência, o mesmo nome acompanha o médico flagrado violando uma paciente sob anestesia durante uma cesariana. Não é prudente falar muito sobre um caso que, embora amplamente exposto na imprensa, ainda está sob investigação. O que pode ser afirmado é que aquilo que para um público do século XVIII poderia parecer como um “adorável sedutor” — e por 300 anos aceitamos assim o mito do personagem —, agora tem de ser visto sob outra luz. Don Giovanni, de Mozart e Lorenzo da Ponte, pode servir também para dar um basta no que nos é vendido como um fascínio heróico por um personagem que não passa de um abusador empoderado. Ao final da ópera, os cantores cantam, nas entrelinhas, que ao criminoso deve corresponder a vergonha do crime. Em abuso e assedio não há masculinidade; pode haver algo de insegurança, muito de conceitos equivocados e obsoletos da sociedade, e extrema perversidade.
Don Giovanni segue em cartaz no Theatro Municipal do Rio de Janeiro nos dias 22 (19h) e 24 (17h) de Julho de 2022. É correr para garantir seu ingresso. Na ópera, não se trata de colocar os personagens em calças jeans e num supermercado (isso tudo já foi feito desde os anos 80), mas sim denunciar a estrutura que torna possível a existência de Giovannis e seus comportamentos. Num Rio de Janeiro submerso em profunda crise moral e ética, entre glórias do passado e erros que nos afetam no presente, o questionamento dos Giovannis é essencial. Os da vida real não são apenas um e não têm nem mesmo a atenuante da música de Mozart.
André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio,
é Professor da Escola de Música da UFRJ