De Diretor para Diretor: um bate-papo sobre o Municipal
Uma coluna diferente: dois diretores artísticos do Municipal, anterior e atual, conversam sobre suas visões do teatro
Parceiro de vários projetos líricos, o tenor Eric Herrero, acaba de assumir a Direção Artistica do Theatro Municipal. E nesse momento em que a casa retorna as atividades depois de anos de silêncio, Eric mostra ser a pessoa certa para o cargo — como ele mesmo disse numa recente entrevista: é a pessoa certa para o diálogo, para escutar os corpos artísticos e para pensar projetos artísticos que falam de reconstrução e educação. Eis nosso bate papo:
André Heller-Lopes: Sua nomeação segue uma tendência internacional de renovação em vários teatros de ópera no mundo, cuja direção artística saiu das tradicionais mãos dos maestros para o cantores líricos. Então, de tenor para diretor artístico, como vc enxerga essa transição?
Eric Herrero. Eu vejo com muito bons olhos. Vivemos um período que pode ser histórico para o setor, uma vez que a visão do artista de palco poderá finalmente ter um grande peso nas decisões e nos rumos a serem adotados em importantes casas de espetáculos mundo a fora. Isso vai muito além da saudável alternância de poder, que areja, traz novas ideias e perspectivas. Agradeço muito a confiança da Secretaria e a Presidência da FTM-RJ.
EH. Você foi Diretor Artístico do Theatro Municipal do Rio de Janeiro por duas vezes, deixando uma marca de realizações, enfrentado grandes dificuldades como a crise de salários do Estado de 2017. Qual você considera ter sido seu maior legado?
AHL. Eu acho que esse legado, vamos poder percebê-lo no futuro. Espero que seja algo que fale de como o Municipal é algo viável, merece o investimento que se faz nele — e também alerte para a importância da manutenção dos seus corpos artísticos e técnicos. O ano de 2017 foi manter o teatro aberto; já 2019 foi um ano de vitórias, em que diria uma programação excelente conseguiu acontecer, e graças a um trabalho de equipe. A pandemia fechou os teatros e expôs problemas estruturais. É fácil, criticar de longe, no conforto do lar ou no anonimato de um blog qualquer: fazer acontecer é que são elas. Agora, legado mesmo talvez somente quando os teatros líricos do Brasil adotarem o modelo internacional, onde seus gestores são escolhidos por concurso público e com contrato fixo de 5 anos.
AHL. Eu acho essencial que o artista que assume um cargo de direção não deixe seu lado artístico pausado. Maestros regem com frequência as orquestras dos teatros que dirigem, diretores cênicos assinam uma ou duas produções. Ainda por cima, tenores como você são as vozes mais raras do mercado. Podemos esperar que o Rio continue a escutar o tenor Herrero?
EH. Com menos frequência, enquanto estiver na Direção Artística, mas, sim, o público pode contar que me verá na temporada do TMRJ. O que acho curioso é que os profissionais que você citou não são questionados por isso. Temos casos famosos como o de Elisabete Matos, a frente do São Carlos de Lisboa, ou mesmo tivemos Plácido Domingo a frente de duas casas nos EUA por muitos anos e ambos participaram e participam das temporadas. Enfim, eu planejo integrar o elenco de Carmen que faremos em forma de concerto, em junho — mas é muito importante deixar claro que não recebo nada a mais por isso!
EH. Qual papel o TMRJ deve ter no campo da formação, da capacitação de artistas e técnicos?
AHL. Bom, eu sou professor da UFRJ há quase 30 anos e acho deveria em verdade haver uma ponte entre as Universidades e Escolas e o Teatro. No campo do balé existe a Escola Maria Oleanewa, mas para os cantores precisaríamos achar um patrocinador para retomar as atividades da Academia de Ópera, vergonhosamente encerrada pela gestão de 2018. No caso dos técnicos, deveriam existir estágios onde pudessem se aperfeiçoar e obviamente o projeto da Central Técnica de Produções tem de ser retomado. Enfim, o papel do teatro é ajudar jovens profissionais a desenvolver seu talento, dar passos maiores e especializarem-se.
AHL Como vc enxerga a programação do TMRJ, o que precisamos ver de ópera e balé? Que público você busca?
EH. Creio que após esse período de distanciamento e fechamento, precisamos pensar com muito cuidado e ainda mais carinho a programação que podemos e devemos entregar ao público, de modo a fazê-lo voltar para o espetáculo ao vivo e presencial. Títulos e compositores mais conhecidos, neste momento, são mais indicados, na minha opinião.
EH. Na sua experiência como Diretor Cênico, além de Diretor Artístico, como se alcança bons e perenes resultados na formação de platéia?
AHL Temos de entender que formação confunde-se com o conceito mais moderno e amplo de educação. A equação dos bons resultados é feita de “tradição X escutar o mundo a nossa volta”. Não falo de concessões de “popularizar”, um termo que sempre me soa demagógico e que em verdade pretende dizer o que se deve escutar ou não. Acredito em termos como “acesso” e “estímulo”: cada um escolhe o que vai gostar. Posso achar que a experiência da ópera e do balé só se fazem plenamente ao vivo, mas não posso ignorar que ha um imenso público que precisa – e merece – ser atendido: eles nem sempre podem viajar para a cidade do Rio e vir ao Municipal.
AHL O que você pode contar com exclusividade para a Veja Rio?
EH. Estou muito animado com duas novas produções de óperas muito conhecidas do público que traremos ao palco do TMRJ nessa temporada: Don Giovanni (Julho) e O Barbeiro de Sevilha (Novembro). Em ambas teremos importantes nomes da lírica nacional, como Leonardo Neiva, Ludmila Bauerfeldt, Claudia Riccitelli, Luciana Bueno, Vinicius Atique, Saulo Javan e Anibal Mancini junto com cantores jovens que estão despontando. É extremamente importante para um teatro abrir espaço para esses profissionais fazerem suas estréias em papéis importantes, como um dia puderam fazer nomes, entre outros, como Bidu Sayão, Paulo Fortes, Diva Pieranti, Clara Marisi, Gloria Queiroz, Alfredo Colosimo ou Ruth Staerke. Eles eram nosso “Quadro Nacional”. Teremos o soprano Tatiana Carlos, jovem de Petrópolis com uma das mais importantes vozes que apareceram no Rio nos últimos anos; o público terá a oportunidade de conhecê-la na ópera Moema brevemente, no dia 28 de Abril. Moema, aliás, foi a ópera que inaugurou o Municipal em 1909 e foi escolhida para ser a ‘ópera da reabertura’. A exemplo dela, apresentamos o soprano Sofia Dornellas no papel de Zerlina e o meio-soprano Lara Cavalcanti como Rosina; finalmente, dois jovens tenores Guilherme Moreira e Ricardo Gaio. É extremamente importante para um teatro abrir espaço a jovens profissionais para que façam suas estreias ou ganhem experiência, desenvolvendo sua arte. Outra coisa que me anima é conseguir viabilizar parcerias já neste ano, pois elas incrementam nossa programação. Uma delas, aliás, possibilitará a estreia mundial do balé Macunaíma, de Ronaldo Miranda, e a outra, com a OSB, uma homenagem ao centenário do célebre soprano italiano Renata Tebaldi, artista maior e que faz parte da memória afetiva no Municipal. Será um concerto ‘feminino’ ao redor das óperas que ela cantou aqui. Melhor ainda, será no “Dia Internacional da Ópera“, 25 de outubro, que desde 2019 não conseguia ser celebrado. Outros dois parceiros importantes serão os Consulados da França e da Áustria. Com o primeiro, faremos uma semana dedicada aos 400 anos de Molière em julho, junto com o aniversário do Theatro e aproveitando os paralelos entre seu Don Juan e Don Giovanni de Mozart (há 30 anos ausente do Municipal!). Já com a Áustria, apresentaremos o Concerto da Imperatriz, no qual teremos a alegria de receber o violinista austríaco Dominik Hellsberg; serão obras de compositores ligados à Imperatriz Dona Leopoldina, figura-chave da nossa Independência. É uma das nossas celebrações do bicentenário — porém ainda guardo algumas surpresas! Fiquem atentos ao TMRJ.
EH Durante a pandemia, a classe artística enfrentou a pior crise de sua recente história. Nessa retomada, como equalizar, encontrando a justa medida entre trazer artistas de fora e proteger o mercado nacional? E como você vê o futuro de nosso setor no país e no mundo? Quais as sementes a serem plantadas hoje? Quais mudanças de rumo a serem adotadas?
AHL É uma questão espinhosa e que vem de antes da pandemia. Os artistas nacionais precisam recuperar ao menos parte do que perderam nesses últimos anos, porém há títulos em que, por um fator ou outro, é imprescindível trazer artistas de fora. Em verdade, eu não acredito que artista tenha nacionalidade — mas não topo essa coisa de que por ser brasileiro, o artista é “menos” do que o colega de fora: sempre defendi que temos todos de ter condições iguais de trabalho e de sucesso. A realidade brasileira é diferente, e mesmo de alguns modelos latino-americanos. Temos de mostrar que ópera é tão brasileira quanto o samba ou sertanejo, ou a dança moderna, a literatura etc. Assim como a culinária brasileira, a quase totalidade das formas de expressões artística ditas nacionais, tem sua raiz na Africa ou na Europa e foram misturadas com a cultura e sabedoria dos nossos povos nativos. A ópera precisa ser entendida como “à brasileira”, feita à moda do nosso país e nosso povo – mas parte dessa receita está em fazer e criar mais repertório brasileiro, e cantado em português!
AHL. Você agora é pai de um carioca, qual o Municipal que vc quer deixar para o Rodrigo frenquentar no futuro?
EH. Um Theatro Municipal com uma imagem sólida, com produções de óperas e balés disponíveis em arquivo, economizando custos, diminuindo prazos e aumentando a oferta de títulos na temporada que possam também ser alugadas e emprestadas a outros teatros, levando a marca do TM para todo o país. Um Municipal que volte a ser vanguarda nas discussões relacionadas ao setor cultural brasileiro, chamando todas as linguagens para o diálogo e construção coletiva rumo a uma cultura forte na cidade, no estado e no país. Acima de tudo, eu quero que o Rodrigo e sua geração saibam que podem e têm o direito de frequentar o Theatro Municipal, que também é deles!”