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André Heller-Lopes

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A volta do Dito Erudito
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Concertos imperdíveis no Municipal do Rio: dois sopranos e dois funerais

Uma ópera brasileira e um concerto de música alemã prometem fazer a alegria dos amantes do Bel Canto

Por André Heller-Lopes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 26 abr 2023, 18h07 - Publicado em 26 abr 2023, 08h41
Os sopranos Gabriella Pace e Carla Caramujo cantam essa semana no Theatro Municipal do Rio
Os sopranos Gabriella Pace e Carla Caramujo cantam essa semana no Theatro Municipal do Rio (acervo/Divulgação)
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Não resisti a (quase) repetir o titulo de uma crônica que escrevi há pouco tempo. O leitor entenderá meu motivos ao longo do texto, espero, ou dirá que preciso ser mais criativo com os títulos. Se há “falha” na repetição, tenho atenuantes — só não consigo mesmo escapar ao pecado de todo cronista ao utilizar a expressão “o leitor isso ou aquilo”… Enfim, a semana traz a feliz coincidência de dois excelentes sopranos estarem de passagem pelo Rio de Janeiro: a paulista Gabriella Pace e a portuguesa Carla Caramujo. Não bastasse sua presença para justificar uma visita à Cinelândia, há ainda o programa: a ópera Piedade, sobre o assassinato de Euclides da Cunha e um dos monumentos musicais do século XX: As Quatro Últimas Canções.

E eis que estas obras têm algo em comum. Ora, tragédias são o ganha pão das óperas e de boa parte da música vocal. Eu não conheci ainda a obra baseada na vida de uma fadinha qualquer, que era boa, linda, feliz e vivia uma existência sem problemas: sem antagonista ou antagonismos as artes cênicas perdem seu sabor. Cantadas, há mortes e mortes — as heroínas tísicas foram moda por um bom tempo, e com elas os absurdos feminicídios que eram justificados como ‘crimes de honra’. Não falo de Carmen apunhalada por D. José, ou mesmo de uma Condessa injustamente acusada de infidelidade por um marido infiel, no dia das bodas de Fígaro: nada de Espanha pois a tragédia da Piedade é bem mais carioca. E por sorte — que me perdoe o grande escritor — o feminicídio planejado saiu pela culatra.

Piedade, de João Guilherme Ripper, é uma ópera brasileira contemporânea — só isso já justificaria figurar numa coluna auto-intitulada “Dito Erudito”: de uma tacada só, desafia quem acha que ópera é coisa do passado e não tem nada de nossa cultura. Estreada em 2012, faz finalmente sua estreia no Municipal carioca, já que na época da composição dois prédios desabaram ao lado do Theatro, fechando-o por vários meses e forçando a estreia a acontecer numa casa de shows, mais acostumada com a acústica e as demandas técnicas do pop e da MPB. É raro, aliás, esse ‘caminho inverso’: trazer estilos musicais ‘populares’ como o funk e o hip-hop para os palcos ‘eruditos’ é considerado “democratizar o acesso”, porém raramente orquestras e outras manifestações clássicas têm as chance de mostrar seu trabalhos nas casa de show… E mesmo com todos os desafios, Piedade tem se imposto como uma super bem sucedida ópera brasileira: uma versão de câmara que foi duas vezes incluída em espaços alternativos dentro da temporada do Teatro Colón de Buenos Aires, uma versão em concerto foi realizada há alguns anos no Municipal de São Paulo e uma nova encenação chega ao Festival Amazonas de Ópera em Maio. Lá como, no Rio de Janeiro, a protagonista será o soprano Gabriella Pace. Embora culmine no assassinato de Euclides na Cunha, no bairro de Piedade, a história trata de triângulo amoroso cujo vértice, o centro e coração é a figura de Anna de Assis — e um destaque a do concerto carioca é que o papel será pela primeira vez cantado por uma brasileira, livrando a Anna de Assis de leve sotaque portunhol… A paixão e versatilidade do canto de Gabriella Pace prometem ser um dos maiores destaques vocais da temporada 2023 do TMRJ: quem melhor que ela para dar vida a esse personagem de fogo e superagudos? E ao seu lado o barítono Johny França e o jovem tenor carioca Ricardo Gaio (um nome para se guardar sem sombra de dúvida), acompanhados pelo Maestro Silvio Viegas. Destaque especial para o fato da estreia (28) acontecer com ingressos à R$2, em um espetáculo de formação de platéias, ao meio dia.

Por uma coincidência, a mesma dupla Opes/Karabtchevsky que criou Piedade em 2012, aportará no Municipal dois dias antes, em 26 de abril com um programa onde destaca-se o ciclo As Quatro Últimas Canções — Die Vier letzten Lieder, no original — de Richard Strauss (é favor não confundir esse Strauss com os anteriores, das valsas e operetas). A voz de Carla Caramujo é certeza de uma leitura, bela, classuda e poética da obra (uma das minhas favoritas em todo repertório do século XX, confesso). Compostas em 1948, portanto logo após a Segunda Guerra Mundial e quando Strauss tinha 84 anos, estrearam apenas dois anos depois, já após a morte do compositor. A sensação de finitude domina a obra, ou antes, a contemplação do que significa a vida. Tudo começa com uma primavera onde floresce o jardim (Frühling, em alemão, titulo da primeira música e com poema de H Hesse), passando pelo ‘outonal’ September e chegando a terceira canção onde a alma abre suas asas em direção aos céus pois é chegada a hora de “ir dormir”. (Beim Schlafengehen, também de Hesse). Na última canção (Im Abendrot— Ao entardecer, em português), o poeta Eichendorff pergunta-se: “seria assim a morte?”. Certamente, uma questão que ecoava em Richard Strauss, ao final da fida e depois de todos os horrores da guerra. Programa imperdível, que ainda conta com uma sinfonia de Mahler e a regência do decano de todos os maestros brasileiros, Isaac Karabtchevsky.

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Para completar, no dia 28, Carla Caramujo e a pianista Priscila Bomfim brindarão os cariocas com um raro e programa de canções portuguesas compostas no século XX. O recital, com entrada franca e que acontece no belo salão de música do Consulado Português, em Botafogo, trará um buquê de estreias: obras de Antônio Fragoso, Francisco Lacerda e Fernando Lapa (um ciclo que foi dedicado à cantora). Dois, quase três, momentos da música do nosso tempo a soar pelo Rio de Janeiro, relembrando (e alertando) tanto para os dissabores da masculinidade tóxica de toda uma sociedade patriarcal quanto todas as belezas da contemplação da existência — e na voz de duas cantoras notáveis!

André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio,
é Professor da Escola de Música da UFRJ.

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