Carmen volta ao Municipal do Rio
Um concerto com melhores momentos da mais pop de todas as ópera abre portas para conhecer e ponderar
Essa semana temos Carmen. Não, infelizmente não foi o museu Carmen Miranda que reabriu nem a pequena notável que voltou americanizada. Quem volta ao palco do teatro municipal é a “fille de Bohème”, cigana, libertária e feminista de primeira hora, la Carmencita. Escutar essa ópera é sempre um encontro imperdível com a heroína da obra de Bizet, a mais pop-ópera de todas.
Já que o moto desta coluna é o dito erudito, nada melhor do que falar da ópera mais presente no imaginário de todos — e ao mesmo tempo uma das mais refinadas do repertório. Por isso mesmo, é curioso imaginar como Carmen chegou a esse lugar de destaque absoluto em 10 entre 10 teatros no planeta, tendo sido um tal fracasso em sua estréia no teatro de l’ Opéra-Comique, na Paris de 1875. Para muitos romanceadores da história, aliás, a desastrosa estréia teria precipitado a deterioração da saúde e da moral de Bizet, falecendo “de desgosto” pouco tempo depois aos 36 anos de idade (a causa real da morte nunca foi claramente estabelecida, suspeitando-se de uma mistura de problema na garganta piorados pelo excesso de fumo, depressão e problemas cardíacos). Quanto à estréia e ao processo de ensaios de Carmen, sabe-se que vários fatores contribuíram para o resultado infeliz: durou mais de 4horas (a duração normal é de 2horas e meia!) e com isso o último ato começou depois da meia noite. E mais: a protagonista foi considerada “imoral”, a orquestra reclamava das dificuldades da partitura enquanto o coro dizia ser impossível ter que atuar individualmente ao invés de ficarem parados numa linha (era o hábito da época…) e, para piorar tudo, ter de fumar e brigar em cena. Carmen era, já na sua estréia, não somente uma ópera do nascente movimento realista como também a primeira ópera moderna.
Inspirada no romance de Prosper Mérimée, a cigana já nascia à frente de seu tempo. Hoje, ela é uma ópera que serve à importante discussão da violência de gênero e até ao feminicídio. Se sua personificação vocal e musical trai os traços do que era a femme fatale do século XIX, hoje a personagem poderia ser uma porta voz de importantes movimentos como #NiUnaAMenos, #MexeuComUmaMexeuComTodas ou #MeToo. Numa recente onda de questionamentos da ética histórica de certas obras, uma produção italiana reescreveu o final de Carmen: ao invés de ser morta a facadas por Don José ao final, a cigana sacava de uma pistola e assassinava ela mesmo ao ex-amante. Pode ser que a transformação de heroína trágica em vilã homicida não seja a melhor saída para quem já vem há quase 150 anos levando golpes de navalha, porém a inversão de papéis talvez não desagradasse à pesquisadora e feminista Catherine Clement; seu famoso livro dos anos 1980 investigava o infeliz destino das personagens femininas que, de uma forma ou de outra, apresentavam-se como transgressoras: “Ópera, ou A derrota das mulheres”, era o título da obra.
Carmen não está sozinha na lista de óperas clássicas que têm sofrido revisões. Em Otello e Aida, ambas de Verdi, já é impossível (e arriscado) pensar que cantores usariam recursos de maquiagem para escurecer seu tom de pele, como tradicionalmente eram representados o mouro, na peça homônima de Shakespeare, e a princesa etíope no conto egípcio. Numa recente montagem na Royal Opera House de Londres, e que tinha o alemão Jonas Kaufmann no papel título, o encenador optou por não caracterizar o tenor de forma tradicional; falou-se da necessidade de respeito aos afro-descendentes e do “público dar um salto imaginativo”. Eu tive a sorte de ter a maravilhosa afro-americana Michelle Bradley quando fiz Aida na Alemanha — mas ela é fruto de décadas de conquistas e investimentos em formação e igualdade de direitos; a grosso modo, Bradley é sucessora de artistas como Anderson, Price, Arroyo, Verrett, Bumbry, Norman etc. É dessa equação de investimentos em formação e oportunidades que o Brasil ainda precisa.
Se uma reparação histórica é essencial e urgente, ela não pode vir acompanhada de nenhuma forma de exclusão: seria triste imaginar que grandes divas como a grega Maria Callas ou a afro-americana Leontyne Price, seriam canceladas se tentassem interpretar a protagonista da ópera Madame Butterfly simplesmente por não serem orientais. Nesse sentido, o célebre Covent Garden de Londres contratou recentemente uma equipe japonesa para revisar sua tradicional montagem dessa ópera, tornando-a mais “consciente” da cultura nipônica. No Canadá, em outra ópera de Puccini, os personagens dos chineses Ping, Pang e Pong, em Turandot, tiveram de ter seus nomes mudados para Jim, Bob e Bill. Já estereótipos de personagens mulçumanos, muito comuns nas inúmeras óperas “à la Turca”, tão populares nos séculos XVIII e XIX, têm dado muita dor de cabeça às várias companhias de ópera que tentam levar este repertório à cena sem ferir susceptibilidades. Um forte insulto ao povo cigano (ou afro-descendente, dependendo da versão), que é cantado por um personagem menor na ópera Un Ballo in Maschera, foi recentemente suprimido, e o texto alterado pela primeira vez em mais de um século. Talvez esse seja um dos caminhos mais honestos; ou talvez seja o famoso “colocar bigodes na Mona Lisa”. Quem tem razão? O tempo dirá. No presente, é importante corrigir erros não com estatísticas mas, sim, com mais oportunidades reais, acesso, estímulo e formação.
Voltando à Carmen, outra questão interessante — ou antes, um equívoco singular — é imaginar como Carmen acabou tornando-se sinônimo de Espanha. A trama, é verdade, passa-se naquele país, porém numa visão fantasiosa de Iberia; ali tudo é essencialmente francês — e cantado em francês. Não é uma “ópera espanhola”. A versão original da obra, em que os números musicais eram intermediados de partes faladas, é uma das caraterísticas de um gênero tipicamente francês (embora haja semelhanças, é verdade, em outros países — mas isso é papo para outra coluna). Foi certamente pensando um pouco neste formato e muito em gerar acesso e estimular conhecer ópera que o Theatro Municipal do Rio de Janeiro teve a idéia de apresentar os melhores momentos da ópera Carmen, nesta sexta-feira e sábado, dias 10 e 11 de Junho. O foco no aspecto puramente musical da obra deve ressaltar o caráter francês da partitura, sem perder as muitas homenagens ao perfume de Sevilha. É uma excelente oportunidade para rever ou travar um primeiro contato com a moderníssima Carmen, la Carmencita.
André Heller-Lopes
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio,
é Professor da Escola de Música da UFRJ.