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André Heller-Lopes

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A volta do Dito Erudito
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Em algum lugar sempre existirá Sondheim

No Dito Erudito, uma homenagem ao grande compositor americano e um passeio por suas raízes musicais

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Atualizado em 30 nov 2021, 13h39 - Publicado em 30 nov 2021, 11h29
Thomas Allen e Felicty Palmer em Sweeney Todd, no Covent Garden de Londres
Cena da montagem de Sweeney Todd, na Royal Opera House Covent Garden de Londres (2003/4) (divulgacao/Divulgação)
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Há uma espécie de herança genética entre os grandes musicais americanos e a ópera. Os finais trágicos e suas heroínas suicidas não acontecem na mesma abundância nos dois gêneros, é verdade. Porém há sempre a opera buffa com suas raízes na Commedia Dell’Arte e no teatro musical popular napolitano; e mais para o norte e o leste, havia o Singspiel (A Flauta Mágica, de Mozart, é o melhor exemplo da forma). Então, talvez seja mais correto dizer que foi a Opereta, francesa e especialmente vienense (austro-húngara, para ser mais acadêmico), a bisavó dos musicais. Entre uma valsa e outra, diálogos falados, alternavam-se com números musicais; sempre música deliciosa, expressiva e melódica — sempre um final feliz. Assim, de Johann Strauss II e Léhar para Gershwin e Kurt Weill, a linhagem é direta; de familia judaica, com pai diretor de vaudevilles e avô empresário, Oscar Hammerstein II (mentor de Sondheim) também não escapa dessa árvore genealógica. A história das trilhas sonoras do cinema americano confunde-se com a de grandes compositores europeus, em especial dos austríacos que escaparam dos horrores do nazi-facismo da Segunda Guerra Mundial. É mais fácil de traçar esses parentescos do que os dentro das famílias no Anel do Nibelungo de Richard Wagner.

Se a tetralogia wagneriana está repleta de deuses, a história do musical americano tem para muitos uma semi-divindade que até semana passada caminhava entre nós, mortais: o compositor Stephen Sondheim. A partida, aos 91 anos, do autor de alguns dos monumentos do gênero assim como do libreto de West Side Story deixou Nova Iorque de luto. Pelos pianos-bares e ruas da cidade que nunca dorme, ecoaram as canções do compositor que um dia colocou em música e verso os dilemas modernos da solidão das grande cidades, em Company. Mais de um jornal ou blog escreveu que, desde a morte de Leonard Bernstein ou de John Lennon, Nova Iorque não demonstrava publicamente tanta dor pela perda de um músico. O West End Londrino apagou suas luzes em sinal de respeito e luto. Mais do que nunca a música de Sondheim provava-se “being alive”.

Não posso deixar de reverenciar nesta coluna dita erudita um grande criador, que conheci brevemente. Se não suspeitasse que ele provavelmente odiaria, faria aqui uma comparação com um dos maiores compositores de ópera de todos os tempos, Puccini. Porém, apesar de ter declarado em uma entrevista de 2009 não ser “um fã de ópera”, a linguagem musical do maior compositor americano dos últimos 50 anos (ou mais) era intimamente calcada em música clássica; em sua formação junto ao compositor modernista Milton Babbitt, Sondheim dissecou Bach, Mozart e Beethoven ao mesmo tempo que devorava Brahms, Ravel e Stravinsky, entre outros. Era um compositor que, apesar de por vezes ser surpreendentemente flexível, sabia precisamente o que queria: transgrediu, recriou, inovou, reinventou baseado numa clara visão da arte que veio antes dele — um caminho que hoje em dia poucos parecem interessados em trilhar.

Nesse “saber o que queria” insiro minha história com Sondheim, pequenina e pessoal. Tudo não passou de um par de encontros durante as semanas finais de ensaios de Sweeney Todd na Royal Opera House, Covent Garden. O ano era 2003, quase 2004. A temporada da ópera da maior casa de ópera de Londres acabara de começar, e com ela meu primeiro ano de contrato ali. Tudo era magia e meu queixo não parava de cair (para quem estava acostumado a aceitar como ‘temporada’ uns poucos títulos de ópera e balé por ano, imaginem o que era assistira diversos grandes títulos em questão de poucos meses, no mais alto nível?). Mas nenhuma ópera ou balé causava mais burburinho naquele final de outubro do que um tal de Sweeney Todd. O espetáculo do australiano Neil Armfield era extremamente inteligente e sério, cantado e tocado como não imagino que alguma vez já tenha sido. Thomas Allen e Felicity Palmer, para mencionar apenas os dois principais, impagáveis como os protagonistas; regência de Paul Gemignani (o maestro em se tratando de musicais)….e lá estava eu de diretor assistente. Melhor, tudo indicava que depois de Chicago a montagem iria para o Metropolitan Opera de NY. Mas, como diria Drummond: “no meio do caminho tinha uma pedra”. Sondheim detestou tudo — e isso apesar de já conhecer o espetáculo e de ter aprovado sua montagem em Londres. Sempre foi simpático, verdade seja dita. Prova é o episódio em que Thomas Allen, grande e veterano barítono, desculpou-se por achar que sua voz não era tão grave quanto o papel pedia; e Sondheim, para espanto de Allen que jamais sonharia com isso, simplesmente disse: “mas por que você não disse logo? Eu mudava a tonalidade ou reescrevia.” Ao mesmo tempo, lembro de longas e pacientes cartas escritas à mão pelo diretor, suplicando cortes aqui e ali, que nem sempre eram recebidas com o mesmo sorriso (estranhamente, no filme de Tim Burton a partitura e as vozes parece que passaram uma noite animada com Freddie Kruger, em A Hora do Pesadelo).

Entender, eu jamais entenderei o mistério do ‘banimento’ daquele Sweeny Todd; mas fico com a teoria veiculada na época, de que Sondheim havia percebido que estavam querendo fazer de seu musical uma espécie de ópera pop — e que passearia de teatro em teatro de ópera e nunca mais voltaria à sua casa, a Broadway e o West End. Isso, ele não tinha a menor intenção de permitir. Não muito tempo depois, esbarrei com o compositor em um teatro londrino e pude dizer como todos nós tínhamos amado a montagem. Achei que os meses teriam atenuado sua impressão. Lêdo engano. Ele sorriu e disse: “o problema é que eu, não”. E este foi o fim daquele inteligente e operístico Sweeney Todd que tantas lembranças boas me deixou: send in the clowns, cai o pano.

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O fato é que, na popularidade alcançada pelos musicais americanos em ‘apenas’ um século de existência, deve haver uma importante lição para a ‘quatrocentona’ ópera aprender. Por que enquanto estamos academicamente discutindo como manter a ópera viva, Sondheim e sua gigante obra continuarão, “somewhere” para sempre “being alive”.

 

André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio, é Professor da Escola de Música da UFRJ.

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