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André Heller-Lopes

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A volta do Dito Erudito
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Arte em tempos de guerra

De um lado, artistas ucranianos pegando em armas, de outro o cancelamento de estrelas russas como Anna Netrebko e Valery Gergiev

Por André Heller-Lopes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 10 mar 2022, 09h09 - Publicado em 7 mar 2022, 13h50
A ópera de Odessa, na Ucrania, sob ataque em 1941 e 2022
Teatro de ópera de Odessa. (acervo/Divulgação)
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Guerras não são novidade na história da música — infelizmente também não os cancelamentos. Existem óperas e balés onde combates ocupam um papel central na trama; há sinfonias e até missas celebrando batalhas e seus heróis (e anti-heróis). Não é de hoje que a indústria cultural passa por profundos auto-questionamentos e alguns cancelamentos, porém a recente invasão da Ucrânia traz à tona algumas novas questões. No imaginário das tropas de guerra, nem sempre é lembrada a presença de artistas fora das fotos de apresentações para elevar o moral dos combatentes. A atriz hollywoodiana Hedy Lamarr — aliás, Hedwig Eva Maria Keisler, austríaca e judia — criou durante a Segunda Guerra Mundial um sistema de comunicações que foi o modelo da moderna telefonia celular e internet. Muitos músicos, poetas ou pintores pegaram em armas, morrendo nas trincheiras das frentes de combate ou da resistência. Há poucos dias, a foto do primeiro bailarino da Ópera Nacional da Ucrânia, Oleksii Potiomkin, com farda e armado, estava lado a lado com outras fotos do artista, de malha e em grandes saltos da dança.

A Missa em tempos de guerra, escrita por Haydn em 1796, é tão atual como o War Requiem, de Britten. Se na primeira obra o sentimento anti-guerra é velado, na segunda, de 1962, o objetivo é claramente anti-litúrgico, misturando textos religiosos em latim com poemas contra a guerra. Em comum, ambas refletem o clima conturbado de seus tempos. A Grande Symphonie funèbre et triomphale”, de Berlioz, era incialmente uma “sinfonia militar” com orquestração que pedia originalmente uma banda militar de 200 instrumentistas (marchando em procissão!); sua estréia, em 1840, pensada para celebrar o aniversário da Revolução de Julho. Cerca de 40 anos mais tarde, o russo Tchaikovsky celebrava o fracasso da invasão francesa à Rússia e a devastação do exército de Napoleão com sua Abertura 1812; canhões de verdade ainda hoje em dia são por vezes usados em apresentações da obra ao ar livre. Verdi retratou guerras em suas óperas; a celebração das conquistas militares de Otello ou a opressão do povo etíope pelos egípcios, em Aida, empalidece face ao coro que canta “Viva la guerra, è bella la guerra”, na ópera La Forza del Destino. Coincidência mais do que curiosa, esta ópera foi composta para ser estreada na Rússia — onde o repertório lírico, assim como a literatura, parece ter especial fascinação pela representação de conflitos bélicos (basta pensar no clássico Guerra e Paz, de Tolstoy, transformado em ópera no século XX por Prokofiev — compositor nascido numa parte do então Império Russo onde hoje situa-se a região de Donetsk, na Ucrânia. Wagner, seguindo a mitologia nórdica, levou guerreiros mortos em combate para o Walhala, onde as valquírias guiavam os mais corajosos após a morte para viverem ao lado do deus Wotan/Odin (o Thor da Marvel segue a mesma lenda).

Mensagens de paz ou pela paz, na ópera, tomariam força no século XX, com obras como Friedenstag (Dia de Paz), de Richard Strauss, ou a emocionante O Imperador de Atlantis, composta por Viktor Ullmann no campo de concentração nazista de Terezín (e que rendeu ao autor e seu libretista a morte nas câmaras de gás de Auschwitz). Tão importante quanto o atual teatro da guerra, seus combatentes e atores são as causas e consequências desta bizarra e inútil encenação de ódio? Conhecida como “Eroica”, a Sinfonia n.º 3, de Beethoven, foi originalmente idealizada para chamar-se “Bonaparte”. A dedicatória a Napoleão foi apagada pelo compositor quando o general proclamou-se Imperador da França. Revoltado com o ato que considerava ofender o conceito dos direitos dos homens, Beethoven pegou a página-título e riscou o nome Bonaparte. Talvez tenha sido esse o primeiro cancelamento da história da música erudita. Os motivos e os protagonistas da guerra passam, são mortais e temporais — e muitas vezes o tempo cuida de apagá-los.

O mais recente movimento neste sentido, divide as opiniões: cancelamento ou russofobia? Na última semana, os russos Anna Netrebko e Valery Gergiev, um dos maestros mais famosos do planeta, e a cantora de ópera mais importante da atualidade foram cancelados. A trajetória de Gergiev confunde-se com a da nova Rússia, surgida após a queda da URSS. Se trouxe o repertório russo de volta aos grandes teatros no ocidente, e com este uma leva de artistas excepcionais, em importantíssimos projetos dentro e fora da Rússia, grande parte dessa aventura nasceu de sua proximidade com o Presidente russo. Quando da recente invasão da Ucrânia, regia no Scala de Milão e o teatro demandou que se posicionasse publicamente condenando a ação do governo de seu país. Com o silêncio de Gergiev, o teatro rompeu seu contrato. Segundo a mídia estatal russa, foi recebido em Moscou como herói da pátria em perigo. Inevitáveis têm sido, e especialmente na Alemanha, as comparações com outro maestro: Wilhelm Furtwängler, o favorito de Hitler. Durante todo Terceiro Reich esteve à frente da Filarmônica de Berlin, regendo com o emblema da suástica ao fundo e nunca pronunciando-se publicamente contra o regime. Verdade seja dita, nunca foi membro do partido nazista ou regeu nos países ocupados; essa funções foram preenchidas por um jovem rival seu: Herbert von Karajan — cuja foto em uniforme nazista causou muitas complicações nos anos do pós-guerra, sem nunca no entanto prejudicar verdadeiramente sua grande carreira. Segundo as palavras do critico Norman Lebrecht, o maestro russo estaria “implicado nos crimes” do atual regime russo “de uma maneira que Furtwängler (ou mesmo Karajan) nunca estiveram.”

Diferente de Gergiev, que regeu concertos de “vitória” depois das intervenções da Russia na Geórgia ou Chechênia, e voou para Palmyra, na Síria, a fim de comandar um “concerto de liberação”, a história de Anna Netrebko é diferente. Na sequência dos diversos cancelamentos impostos ao maestro, a artilharia da opinião pública e dos diretores de teatros voltou-se contra a diva da ópera. Extremamente afeita às redes sociais, o ‘coquetel Molotov’ midiático formou-se — e explodiu — rapidamente: Netrebko pronunciou-se contra a guerra, chegou mesmo a pedir o fim das hostilidades…mas os que não gostam de sua voz (indiscutivelmente uma das melhores da atualidade) uniram-se aos que já detestavam a posição política que assumiu em 2014, quando doou €15.000 para o teatro da região separatista da Ucrânia (e, inadvertidamente, posou segurando sua bandeira). Depois de alguma polêmica, o soprano declarou que cancelava todos seus compromissos. Tornou suas amadas redes sociais privadas e desapareceu momentaneamente. O poder é uma engrenagem complicada, como uma planta carnívora ou como criar um tigre no quintal de casa: simplesmente não é domesticável.

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Começava ai uma onda negativa que estendeu-se a vários outros artistas russos — estendendo-se do Balé Bolshoi até ao repertório de compositores russos mortos há mais de um século e meio. Só o imediato final das hostilidades entre Russia e Ucrânia (melhor seria dizer todo o Ocidente?) pode resolver ou reverter a situação. O problema é que, enquanto isso, parece ter-se iniciado uma caça às bruxas — e uma perseguição recheada de xenofobia. Outro maestro russo, Tugan Sokhiev, diretor musical do Teatro Bolshoi de Moscou e da Orchestre National du Capitole de Toulouse, na França, acabou por decidir renunciar a ambos os cargos face a demanda das autoridades de que tomasse uma posição. Enquanto o celebre pianista Eugene Nissin pronunciou-se contra o ataque à Ucrania, no Canadá o concerto do jovem pianista russo Alexander Malofeev em Toronto foi cancelado uma vez que este permaneceu em silêncio contra a invasão. Enquanto o Hermitage de Amsterdã rompeu seus laços com museu original situado em São Petersburgo, o maior teatro de ópera da Polônia cancelou a temporada que faria da ópera Boris Goudnov, de Moussorgsky, “em solidariedade ao povo ucraniano.” Não está em questão o ato violento de uma invasão, ou absurdo da guerra; porém a escalada de tensões coloca um dilema para as instituições culturais. Alguns gestores pensam ser obrigação moral de cada artista protestar contra semelhante agressão, outros temem protestos antes da apresentação de artistas russos; os mais prudentes parecem lembrar a regra básica de que não se pode nem colocar todos sob suspeita generalizada nem exigir posicionamentos políticos.

Não será a maioria do planeta que terá os líderes políticos russos em alta estima atualmente. No entanto, cancelar a execução de obras compostas no século XIX, não têm nada a ver com a questão atual. Wagner, não é responsável pelo uso de sua música meio século após sua morte, nos campos de concentração. Ele é culpado, sim, por ter sido abertamente antissemita em seu próprio tempo e com suas próprias palavras. Será que se Netrebko não condenou o Presidente da Rússia, talvez seja porque simplesmente não pode fazê-lo sem colocar a si mesma e a sua família em algum tipo de risco? Nenhuma forma de bombardeio deveria ser aceitável, nem o moral. Seria desejável uma declaração forte do maestro? Sem dúvida. Mas nem sempre é possível — e poucas vezes as estrelas da vida real imitam os heróis da arte.

Finalmente, é preciso acima de tudo entender que essa não é uma guerra contra os russos ou sua cultura: a peça central, o inimigo é tão somente um determinado jogo político e as práticas de seus principais anti-heróis.

André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio, é Professor da Escola de Música da UFRJ.

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