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Por André Heller-Lopes, diretor de ópera
A volta do Dito Erudito
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Arte ao invés de agrotóxicos e armas

Depois de uma semana de cultura em Montevidéu, como não questionar a importância que o Brasil dá a cultura?

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Atualizado em 16 dez 2020, 15h15 - Publicado em 16 dez 2020, 12h26

Há alguns meses discute-se a ‘estranha’ idéia de isentar agrotóxicos de impostos. Ideologias à parte, a decisão parece ir (no mínimo e inquestionavelmente) contra tudo que se tem discutido sobre o tema — e implementado — na última década, e isso em nível internacional. Nos últimos dias foi a importação de armas de fogo que recebeu este ‘presente de natal’ da isenção de impostos. Papai Noel anda com umas idéias bastante inusitadas. Salvo se o mundo pós-pandemia vier com um ‘Novo-Natal’ foi uma espécie de celebração apocalíptica, com o bom velhinho travestido de Coringa, arqui-inimigo do Batman… E no entanto, supresa-supresa(!), a importação de livros sem impostos parece agora ameaçada de taxação. Há muito, aliás, a importação de partituras e instrumentos musicais sofre pesadas taxações, dificultando ainda mais os já restritos orçamentos dos teatros e orquestras em sua busca por levar todo tipo de música a um grande público. Mesmo que sejam virtualmente iguais aos livros, encadernadas e totalmente impressas, e as notas musicais não sejam nada mais que um idioma como outro qualquer, toda música que chega do exterior é barrada e taxada na alfândega; um serviço de correio expresso manda avisar ao destinatário que pagou o imposto e que está de posse de sua encomenda — sem choro nem vela, é aceitar ou perder o pacote. Parece um punhado de gestos contraditórios e que desafia toda coerência — ou não. Parafraseando o amigo Léo Aversa em um recente ‘tweet’, talvez a solução fosse embalar tudo em pacotes escritos: “cuidado agrotóxico!” …

O valor dos impostos fala muito do valor que se dá à Arte. Por acreditar que a Cultura é instrumento de educação e aliada essencial na construção da sociedade, pensava por esses dias em como nosso país difere de outros vizinhos latino-americanos. Ainda mais que ao chegar de uma semana em Montevideo, sou recebido pela noticia de que a Orquestra Filarmonica de Goiás está ameaçada de extinção. Uma das melhores iniciativas recentes no gênero, seu fim seria uma bomba para a indústria cultural brasileira. Uma orquestra pulsante, no coração do país, com gravações de repertório brasileiro destacadas no exterior e não muito longe da capital do país (onde, aliás, o Teatro Nacional está há anos fechado). Voltando ao Uruguai, nunca lamentei tanto a perda da Província Cisplatina em 1825. A julgar pelo que pude ver em apenas alguns dias na capital do país, teria sido uma sorte para nós termos sido colonizados por eles….Depois de testemunhar, um balé, duas peças de teatro, gravações de series de TV, ensaios de Zarzuela e ainda um concerto sinfônico, penso que não seria má idéia ter sido anexado pelo Uruguai. Suspeito que seria banho de civilização. Digo mais: com desempenho exemplar dos uruguaios durante a pandemia, com poucas mortes e um número de pequeno contágios, já em agosto reabriam salas de espetáculos; filmagens de diversas séries estrangeiras de TV acontecem pela capital. Uma equipe brasileira, aliás, filmava em Montevideo cenas passando-se pelo Rio de Janeiro e São Paulo. Na geração de empregos para artistas e técnicos locais e latino-americanos. está a matemática da cultura, bastante simples até: basta saber a fórmula da adição.

Num ‘novo normal’ perceptível pelas máscaras das plateias reduzidas, organizadas em sua entrada e saída, nas reuniões de trabalho à distancia e com “tapabocas puesto“, nas saudações com os punhos ou nas mesas afastadas umas das outras nos restaurantes, a economia segue viva. Desde agosto, a Filarmônica de Montevidéu (regida pela brasileira Ligia Amadio) já apresentou 14 concertos. No mesmo Teatro Solis, além dos espetáculos de teatro em cartaz nas salas menores, ensaiava-se uma Zarzuela espanhola cuja estréia estava prevista para fins de dezembro (a depender do aumentos dos caso no país). Quando estrear, ”La del manojo de rosas” trará uma reunião artistas não somente uruguaios como espanhóis, alemães e argentinos; e todos terão ensaiado de máscara, cumprido quarentena ao chegar e sido constantemente testados. Enquanto a opereta espanhola ensaiava, o BNS – Balé Nacional do Sodre estreava um novo espetáculo dedicado ao centenário do escritor uruguaio Mario Benedetti. Baseado em ”La Tregua”, um dos seus mais famosos livros, o balé foi decididamente um grande destaque da programação latino-americana em 2020. A sucesso da estréia em plena pandemia internacional foi tal, que acabou transmitido para todo continente. Vendido para uma importante plataforma de streaming da Europa, em breve seguirá carreira internacional, levando nome do balé do Sodré para o exterior. Menos complexo para os tempos do novo-normal que o canto lírico ou a dança, o teatro também segue sua retomada em Montevideo: de um lado, a peça “Chacabuco” com a Companhia Pequeno Teatro de Morondanga reabrindo o Teatro Odeon — isso em plena pandemia — e a espetacularmente visceral e comovente nova obra do premiado dramaturgo uruguaio Sergio Blanco, “Memento Mori” — uma espécie de conferência sobre a morte, cuja tradução não podia ser mais adequada: “lembra-te de que vais morrer. ” Ambos os textos teatrais, encaravam o tema da morte.

Nossa realidade no Brasil é em tudo muito diferente. Essa ressalva é importante neste momento em que, apenas num dia podemos chegar a mais de 900 mortes. Ainda assim, ainda que a nossa única opção razoável seja mesmo ficar em casa, é preciso pensar que existe um futuro dentro do ‘novo-normal’ — e planejá-lo. Nessa programação a ser estreada em pleno verão há, aliás, uma interessante sugestão para o Rio de Janeiro: a importância da Cidade investir em uma programação cultural durante os meses de verão, quando ainda mais turistas nos visitam. Exatamente como tem acontecido nos teatros europeus, ainda mais agora haveria que se seguir com programações, sejam virtuais ou presenciais. No campo da ópera, balé e música de concerto, a cidade pára – e por que?

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Há túnel no fim desta luz, mas há que se planejar e pensar com idéias novas.

André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio, é Professor da Escola de Música da UFRJ.

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