A invenção dos golpistas
Na vida ou na ópera, haverá uma glamourização do trambique? E há dois pesos e duas medidas para os golpes aplicados por homens ou mulheres?
Uma pilha de livros olha-me acusadoramente, demandando leitura. Esperam há um bom tempo. Por vezes, perdem a precedência. A ‘Trilogia Figaro’, de Beaumarchais, furou descaradamente a fila pois vou encenar em breve As Bodas de Fígaro, de Mozart, e não poderia deixar de reler a peça original. O golpe de misericórdia no meu hábito de leitura tem sido a explosão das plataformas de streaming, que deixou livros empilhados, revoltados e acumulando a maresia carioca. Para piorar, começo a encontrar — delirar? — paralelos entre as séries e óperas, no melhor estilo daquele menino de Sexto sentido: “I see dead people”.
Se a vida é uma ópera — já dizia o ‘bruxo do Cosme Velho’—, sua galeria de personagens anda um páreo duro para qualquer melodrama. Foi-se o tempo em que o máximo do escândalo era o filho ilegítimo da Condessa das Bodas com Cherubino, centro da trama da sempre esquecida terceira parte da trilogia de Beaumarchais (“A mãe culpada”). Já disse aqui que os disparates da vida real, com vários toques de humor negro, vem oferecendo difícil competição à ficção. Tragédias pluviais anunciadas anualmente ou a mais recente sinfonia pastoral à brasileira, são apenas o canto da velha e desafinada melodia do descaso ou da corrupção. A “arte” do golpe não tem nada de artístico nem de Arte. Duas séries chamaram recentemente a atenção, como dois lados de uma mesma moeda que ameaça tornar ‘charmosos’ a golpistas e seus maus-caratismos. Falo de “The Tinder Swindler” (O Golpista do Tinder) e “Inventing Anna” (Inventando Anna).
Na primeira, um sujeito faz-se passar por milionário e seduz mulheres que conheceu num aplicativo de relacionamentos. Tal qual o Don Giovanni da ópera de Mozart, promete casamento e fortuna. Porém, se o mítico sedutor de Sevilha é um verdadeiro nobre, perverso e protegido pelos privilégios da aristocracia, o golpista do Tinder não passa de uma fraude. A série mostra-o como um israelense feioso, vestido com caríssimas roupas de grife, vivendo um estilo de vida fora de sua realidade — tudo comprado com o dinheiro de suas vítimas. Quando as ‘noivas’ menos esperam, ele começa a pedir dinheiro, somas altas, com a desculpa de que ele estaria sendo perseguido por “inimigos”. Parece haver toda uma ‘máquina de golpe’ operando à sua volta, perpetuando um ‘esquema’ onde, sem saber, uma namorada toma empréstimos para pagar a farsa da conquista da próxima incauta. No catálogo de conquistas e Don Giovanni, ele coleciona mulheres em diversos países, utilizando métodos diferentes para louras, morenas ou grisalhas: “sua paixão predominante”, canta Leoporello, é a destruição da “jovem principiante”. Um curioso paralelo entre ópera e série de streaming é que em ambos os casos as mulheres parecem atraídas pela própria destruição. Talvez seja possível argumentar que a educação da mulher no século XVIII (ou antes, a ausência desta!) propicie tanta ‘ingenuidade’; mas é (quase) inacreditável que em pleno século XXI mulheres adultas e articuladas caiam nas histórias de um sujeito que tem “roubada” escrito de um lado ao outro da testa. Você manteria o relacionamento com um sujeito que revela ter negócios escusos com diamantes e ser perseguido por assassinos?
A outra série fala sobre uma falsa herdeira alemã, baseada na reportagem da jornalista Jessica Pressler, da “The New Yorker”. Agindo sozinha, a moçoila engana fatia importante da alta sociedade Nova Iorquina e por pouco não consegue alavancar um mega empréstimo. A capacidade de ‘cara-de-pau’ da milionária ‘inventada’ supera todas as expectativas, assim como sua arrogância no trato com hotéis, lojas, restaurantes e a maior parte de seus empregados. De muitas maneiras ela é comparável a protagonista de A coroação de Poppea, de Monteverdi. Personagem real como a Anna inventada, a imperatriz Poppea também enganou deus e o mundo para conseguir casar-se com Nero e ascender ao trono — incluindo nesse percurso forçar o suicídio de Seneca e livrar-se de Ottavia, com quem o imperador estava casado. A ópera nos mostra uma Poppea que não está muito distante da pequena psicopata da serie da Netflix; com a possível ressalva de que a falsa herdeira alemã (em verdade, russa) age sozinha, sendo mais mimada do que propriamente vítima de uma vida infeliz. Aparentemente, o único ‘mau-trato’ sofrido por Anna foi um certo bullying por parte de outras meninas e, claro, não ter dinheiro para comprar as coisas que queria, roupas, em especial (quando vai a julgamento, a roupa que aceita vestir ocupa uma parte significativa do episódio).
Ambos os casos desafiam até mesmo a tradicional ausência de realidade da ópera. Que ambos são vigaristas, não se discute. O golpista do Tinder não chega a ser engolido pelas chamas do inferno, como Don Giovanni, mas aparentemente já ressurgiu lépido e faceiro, pronto para novos ‘negócios’, depois de poucos meses de prisão (diversas modernas encenações da ópera, aliás, já propuseram um destino parecido para o Don, fazendo-o ressurgir triunfante ao final de tudo). Já a outra, julgada e condenada a bem mais tempo na cadeia, experimenta agora uma renovada popularidade nas redes sociais — o que não deixa de ser uma espécie de ‘coroação’. A diferença na percepção das duas histórias parece estar na maneira como as mulheres envolvidas saem em desvantagem. As vítimas do golpista não deixam de parecer um pouco tolas ou — pior — como “querendo se dar bem” (escutei até mesmo outras mulheres dizerem). No caso de Anna, as amigas ao seu redor são retratadas como fúteis e interesseiras, focadas em roupas e luxos como a própria falsa herdeira; a ex-amiga que leva um golpe no seu cartão de crédito a denuncia e só falta sair como vilã. Cabe mesmo discutir o nível de “ingenuidade” delas? Os homens executivos fragorosamente enganados não aparecem de forma tão pejorativa. Eu diria que são vítimas e pronto — todos.
Não é de hoje que o triunfo do mal é volta e meia enaltecido, cria fascinação. Há paralelos interessantes. Mozart pode ser o máximo da perfeição, enquanto que Wagner e Strauss esfacelam nossa alma e revelam os amores subconscientes, Verdi ou Puccini fazem sofrer de amor: seriam suas obras o Netflix do século XVIII, XVIII e XIX?
A vida é uma ópera, e uma grande ópera.
Deus é o poeta; a música é de Satanás .
O êxito é crescente.
Poeta e músico recebem pontualmente os seus direitos autorais,
Que não são os mesmos.
(Machado de Assis)
André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio, é Professor da Escola de Música da UFRJ.