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De volta ao armário

A pedido de advogados, que sofrem horrores com o calor inclemente do verão, a Justiça afrouxou o uso de terno e gravata nos fóruns. O mesmo vem acontecendo em empresas, hotéis e restaurantes da cidade

Por Ernesto Neves
Atualizado em 2 jun 2017, 13h14 - Publicado em 29 jan 2014, 18h29

Desde que o Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ) retomou suas atividades após o recesso de fim de ano, a conversa entre advogados, juízes e desembargadores tem sido monotemática. Ela não tem nada a ver com um julgamento rumoroso, uma ação milionária nem com uma fofoca daquelas. O mote é mesmo prosaico: a liberação do uso de paletó e gravata para os advogados, formalizada pela presidente do TJ, a desembargadora Leila Mariano, na última terça (21) e com validade de dois meses. Tornou-se facultativo vestir-se com essas duas peças para quem transita pelas dependências dos fóruns do estado ou precisa participar de audiências. Porém, há certas restrições: a medida está circunscrita à primeira instância, e os juízes continuam a ter o poder de exigir o uso do terno em sua comarca. O abrandamento da regra era uma reivindicação antiga da classe, enfim chancelada. Como o verão está registrando as mais altas temperaturas dos últimos dez anos ? com sensação térmica de 50 graus ?, a causa ganhou força inaudita desta vez. Famosa por emprestar seu nome a pleitos históricos, como a redemocratização do país nos anos 80, a Ordem dos Advogados do Brasil se engajou na luta pela flexibilização. “Nada justifica tamanho sofrimento. A cidade está muito mais quente que no passado. Além disso, temos novos valores culturais”, argumenta Felipe Santa Cruz, presidente da OAB-RJ. O mesmo movimento vem acontecendo em repartições públicas, hotéis, empresas e restaurantes. Símbolo de sofisticação e rigor, o Copacabana Palace liberou seus seguranças do uso do paletó. No fim de 2013, o Marriott aboliu a gravata do traje de seus funcionários e, em janeiro, a prefeitura publicou um decreto que autoriza seus servidores a usar roupas informais.

Pode parecer um debate irrelevante, mas quem tem de enfrentar todo engalanado as ruas cariocas nesse ambiente de sauna sabe bem de sua importância. O descompasso entre o vestuário e o calorão não só causa desconforto, mas também põe em risco a saúde do indivíduo. Não à toa, o movimento pelo uso facultativo do paletó na Justiça tem como quartel-general o Fórum de Bangu, que recebe todos os dias cerca de 2?000 advogados, num bairro onde frequentemente é registrado o pico de temperatura da cidade. Para dar conta do crescente número de casos de mal-estar verificados naquela jurisdição, a Caixa de Assistência dos Advogados do Estado do Rio (Caarj), plano de saúde da categoria, instalou por lá uma enfermaria provisória. O centro médico confirmou a dimensão do problema. Em três semanas de funcionamento, contabilizou 164 atendimentos. Quase metade dos casos foi diagnosticada como aumento ou queda brusca de pressão, males comumente relacionados ao excesso de calor. No Centro, a via-crúcis enfrentada nos deslocamentos entre os diversos pontos do Judiciário foi amenizada por meio de outra iniciativa. Com o aumento da demanda de passageiros em busca do bem-bom do ar-condicionado, a OAB teve de botar um ônibus maior para fazer o trajeto entre os órgãos da Justiça situados na região. Se afeta pessoas de todas as faixas etárias, a exposição à temperatura extrema é ainda mais penosa para os idosos. O advogado Corintho Marcellos, de 78 anos, perdeu a conta das vezes em que foi acometido pela sensação de desmaio na rua. “Quando preciso caminhar no sol, quase sempre minha pressão cai. Aí preciso sentar e beber água para prosseguir”, conta ele.

Fernando Lemos
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Com notório apreço a ritos e tradições, alguns com raízes que remontam à Antiguidade, o Poder Judiciário ainda é um bastião de resistência à modernização do vestuário. Basta ver que, a despeito do afrouxamento ora em vigor, nos corredores dos fóruns a ampla maioria veste terno. Por ali, o rumor é que a medida da presidente do TJ não foi extensiva à segunda instância para não desagradar aos magistrados mais conservadores que atuam naquela alçada. Na Promotoria e Defensoria Pública o panorama é o mesmo. Boa parte dos próprios advogados, inclusive, defende o uso do paletó e da gravata nos dias amenos. Radicado há dez anos na cidade, o paulista Roberto Menin aderiu faz pouco tempo ao estilo camisa social e calça de prega, mas somente nas datas em que não tem compromisso com juiz ou cliente. “Quando o calor for embora, deve-se manter a liturgia. Senão, periga virar bagunça e vai ter gente usando chinelo”, diz ele, desconfiado.

Fernando Lemos
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Não nos corredores dos fóruns, mas é exatamente para estimular essa mudança tão radical que se expande nas redes sociais a campanha Bermuda Sim. Lançado neste mês pelos publicitários Vitor Damasceno, Ricardo Rulière, Saulo Catharino e Guilherme Anchieta, o movimento reúne 10?000 seguidores no Facebook e o propósito é claro: se você vive no Rio, nada mais natural do que andar com as pernas de fora. O esforço dos rapazes consiste justamente em espalhar essa ideia. Qualquer pessoa pode mandar uma mensagem para eles, solicitando que a empresa onde trabalha libere o uso da peça. Cabe à turma do site entrar em contato com o patrão e transmitir o pedido do funcionário, mantido no anonimato. “Já enviamos 4?000 e-mails e fomos surpreendidos pela repercussão. Grande parte dos gestores mostrou-se aberta ao diálogo”, diz Rulière. Na chamada indústria criativa, um setor no qual se incluem as produtoras de audiovisual e o mercado da moda, pontos fortes da economia carioca, o estilo despojado já encontra muitos adeptos. Mas a guerra contra os trajes formais cresce em ambientes surpreendentes. A rede de varejo Casa&Video, por exemplo, liberou o uso de bermuda para seus 3?500 funcionários desde novembro. Diretores e até mesmo o presidente, Fábio Carvalho, trabalham agora mais à vontade. “A princípio, era uma medida restrita ao período de verão”, conta o executivo. “Mas a aceitação foi tamanha que vamos torná-la permanente.”

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Em uma cidade solar e afeita ao relaxamento, é natural que a informalidade seja a regra, tanto no comportamento como na maneira de vestir. Mas, se não houver limite, bom-senso e bom gosto, a liberalidade na dose errada poderá resultar em excessos. É fácil flagrar um carioca vestido de maneira inadequada em restaurantes, cinemas, salas de aula e festas. Dono de uma banca no Centro com 115 funcionários, o advogado Sérgio Bermudes convive entre os extremos da formalidade e da avacalhação. No seu escritório, afrouxou o uso do terno, sem problema. No entanto, na faculdade de direito da PUC, onde leciona, vira e mexe ele ainda se assusta com o que vê. Há pouco tempo, ficou surpreendido com um aluno de sunga e camiseta sentado na primeira fila. Num gesto democrático, pediu que a turma fizesse uma votação para decidir se o jovem poderia ficar ali com aquele traje, mas alertou: caso a resposta fosse positiva, o professor também se permitiria dar aula de cueca. “Eles, é claro, optaram pela saída do estudante”, lembra Bermudes, às gargalhadas.

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A invenção do paletó remete à França de Luís XIV (1638-1715). Vaidoso notório, o Rei Sol foi um lançador de tendências. Na corte local, os alfaiates criaram as três peças que dariam origem ao terno: a casaca, o colete e o culote, embrião da calça comprida. Após se difundir pela nobreza europeia, o conjunto teve seu corte aprimorado na Inglaterra. A gravata, por sua vez, era um acessório usado por militares croatas que caiu nas graças da aristocracia francesa no século XVII. Por aqui, os ternos foram alçados a símbolo máximo de poder depois da chegada da família real, em 1808. Importados do Reino Unido, eles eram feitos de lã, inadequada para o calor dos trópicos. Ainda assim, foram adotados pela elite local e, no início do século XX, disseminaram-se entre cariocas menos endinheirados. Havia até consórcios para facilitar a compra. Com esse impulso, a indumentária tornou-se onipresente na paisagem da cidade, usada pelos varões tanto para flanar pela Rua do Ouvidor como para ir a estádios de futebol.

A hegemonia do traje foi abalada somente nas décadas de 60 e 70. Sacudidos por movimentos de contracultura, os Estados Unidos viram o despojamento espalhar-se no ambiente corporativo a partir da Califórnia. Lá, as nascentes empresas de tecnologia rejeitaram a peça, que passou a ser associada à mesmice e à falta de imaginação. Na atitude estava embutida uma contestação da hierarquia, uma vez que a roupa era uma forma de diferenciação dentro dos escritórios. Para reforçar os novos valores, a dupla mais idolatrada do setor, Bill Gates e Steve Jobs (1955-2011), tinha como uniforme calça jeans, camiseta básica e tênis, mesmo em eventos importantes. Hoje, percebe-se um claro conflito de gerações entre quem defende e quem rejeita a formalidade. Na Alemanha, a ascensão profissional dos nascidos após a revolução da alta tecnologia derrubou pela metade a vendagem anual de gravatas, que em 1995 era de 20 milhões de unidades. E, segundo o instituto de pesquisas Gallup, o lucro obtido com a comercialização dessas peças caiu 48% nos Estados Unidos desde os anos 90. Por aqui, apesar do peso da tradição e da resistência de algumas camadas profissionais, o terno deixou de ser um símbolo automático de respeitabilidade e seriedade. “É um caminho sem volta. No futuro, deixaremos de usar paletós, e não somente no verão”, acredita o advogado Santa Cruz. Pelo visto, será cada vez mais raro vê-los sair do armário.

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