Sem medo da crise, empresários investem pesado na cidade

Gestores como Marcelo Torres, dono do suntuoso Xian, um complexo gastronômico e de entretenimento a ser inaugurado no Rio, apostam contra o pesimismo

Por Paula Autran
Atualizado em 19 ago 2017, 09h00 - Publicado em 19 ago 2017, 09h00
Marcelo Torres, dono do restaurante Xian, que abrirá no Centro: espaço de 10 milhões de reais para 1 500 pessoas (Felipe Fittipaldi/Veja Rio)
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Os tempos em que o Rio era visto como um oásis econômico com índices de crescimento em padrão chinês parecem tão remotos que muita gente chega a duvidar que eles de fato existiram. Tal choque de realidade, entretanto, não foi empecilho para que brotasse no topo do hotel Prodigy, ao lado do Aeroporto Santos Dumont, um empreendimento que não faria feio em meio à ostentação e ao cosmopolitismo de megalópoles como Xangai ou Hong Kong. Pelo contrário. É ali, numa cobertura de 3 000 metros quadrados, que o empresário Marcelo Torres abre, até o fim de agosto, um espaço batizado com o nome de Xian, uma referência à cidade chinesa que abriga o exército de mais de 8 000 estátuas de terracota. Com cinco ambientes, o complexo, que mistura gastronomia e entretenimento, tem inspiração oriental e uma grandiosidade incomum nesse ramo. A começar pelo investimento, de 10 milhões de reais, e pela ambição de atrair 15 000 pessoas por mês. A meta dos donos é que o negócio alcance um faturamento de 24 milhões de reais já no primeiro ano de funcionamento.

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O futuro restaurante e a varanda do Xian: ambiente suntuoso e vista estonteante do Rio (Felipe Fittipaldi e Reprodução/Reprodução)

Basta pisar no assoalho de tábuas de canela trazidas de uma fazenda centenária para constatar que nada no Xian é convencional. Já no lounge de entrada, o visitante depara com uma jabuticabeira no meio de um salão onde espelhos ocupam uma das paredes. Como se compusessem um grande painel, eles criam um curioso efeito visual, misturando os reflexos de um laguinho de carpas e da Marina da Glória com a paisagem que se avista além das amplas vidraças. Do lado oposto à janela, o bar é limitado por uma parede no formato de um origami e será comandado por Rod Werner, barman especializado em drinques inusitados como o blood mary que não é vermelho, mas sim transparente, e nas pedras de gelo esféricas que ele mesmo produz. Mais à frente, a cozinha envidraçada divide a atenção com um jardim ao ar livre, com vista para o Pão de Açúcar e o Corcovado. O restaurante, para 350 pessoas, tem sofás de couro e a configuração de um anfiteatro, onde o espetáculo é — sempre ela! — a vista. No espaço ainda há um clube noturno, cuja arquitetura remete aos contêineres embarcados nos portos chineses, e um terraço com um palco desmontável, com capacidade de abrigar shows ao ar livre para até 1 000 pessoas. “Acho que o nome Xian tem tudo a ver com nosso momento. É preciso muita disposição para lutar e brigar ao investir aqui”, diz o empresário, dono de nove empreendimentos na área de gastronomia, entre eles os restaurantes Giuseppe Grill e Laguiole, vencedores, respectivamente, nas categorias melhor carne e melhor carta de vinhos no VEJA RIO COMER & BEBER 2017.

O projeto do Xian nasceu quando o hotel e o shopping anexo, o Bossa Nova Mall, começavam a ganhar forma, em meados de 2015. Por duas vezes, a burocracia e as dificuldades atingiram níveis tão avassaladores que o empresário quase desistiu da empreitada. Aos 55 anos, Torres é conhecido pelo rigor com que controla a qualidade do serviço e do que é servido em suas casas e pelo faro apurado para identificar craques da cozinha — foi no Laguiole que germinaram talentos como os premiados Pedro Artagão, Ricardo Lapeyre e Elia Schramm. No ramo da gastronomia desde o início dos anos 90, Torres foi executivo da Multiplan, empresa carioca dona do BarraShopping, do VillageMall e de outros dezesseis centros de compras espalhados pelo país. Da empresa, absorveu o método de gestão e administração que aplica a seus negócios até hoje.

A princípio atuando como dublê de executivo e empresário, Torres tornou-se de fato um empreendedor em tempo integral em decorrência de uma tragédia. Em 1996, época em que o Rio estava mergulhado no fundo do poço da violência urbana, seu irmão e sócio, Márcio Torres, responsável pela administração do Giuseppe, o primeiro restaurante do grupo, foi sequestrado e assassinado de forma brutal por um ex-empregado. Foi quando ele passou a dedicar toda a sua atenção à construção de uma empresa que atualmente tem mais de 350 funcionários. “Procuro encarar os momentos ruins como uma razão a mais para lutar pelos valores em que acredito”, explica. “Agora, por exemplo, os capitalistas sumiram. Como meu negócio é trabalhar, e não apenas fazer dinheiro, esta é a chance de avançar em áreas que, em outras circunstâncias, estariam em mãos de outros grupos com foco estritamente no lucro.” Fiel a essa doutrina, Torres promete entregar especialidades asiáticas, servidas no deslumbrante ambiente desenhado pelo arquiteto Miguel Pinto Guimarães, por valores que oscilarão entre 70 (almoço) e 90 reais (jantar) por pessoa. “Se há algo que eu não quero que aconteça é que um cliente em potencial pense: ‘Este lugar não é para o meu bico’. É para o bico dele, sim. É para o bico de todo mundo.” Com projetos que vão além do Xian, Torres planeja abrir até o fim do ano uma casa no Mirante do Pasmado, em Botafogo, e outras duas na Barra.

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Numa cidade em que a maioria dos bares e restaurantes está à míngua, tanto pelos efeitos devastadores da crise econômica quanto pela diminuição da clientela, assustada com a violência, empreender no ramo da comida e da bebida tem sido, antes de mais nada, um ato de resistência. Pelos cálculos do Sindicato de Bares e Restaurantes do Rio de Janeiro (SindRio), desde janeiro mais de uma centena de estabelecimentos fechou as portas, enquanto muitos optaram por encerrar o expediente mais cedo para reduzir custos e contornar a falta de policiamento nas ruas. Quem resiste é obrigado a se virar com uma queda de até 40% no faturamento. Com isso, só em junho o setor perdeu 602 vagas com carteira assinada em todo o estado, 452 delas nos estabelecimentos da capital. No Rio, de janeiro a junho, a queda do emprego formal no segmento totalizou 2 595 vagas. “Abrir um restaurante ou um bar em um momento como este é uma demonstração de coragem. E é disso que precisamos agora. Acho admirável quem faz isso, torço e trabalho para que dê certo”, diz o presidente do SindRio, Pedro de Lamare.

Por mais quixotesco que possa parecer, o empreendedorismo de Marcelo Torres em meio às vacas magras não é um fato isolado no cenário da gastronomia e diversão cariocas. Um pequeno grupo de empresários também tem dedicado energia, paciência e principalmente dinheiro para pôr de pé planos ambiciosos com o intuito de espantar o torpor que vem dominando a cidade. Dono de casas como Zazá Bistro e da rede de pizzarias Vezpa, além de ser fundador da cervejaria e dos bares Devassa, Cello Camolese Macedo se juntou ao artista plástico Vik Muniz para transformar a antiga Vila Portugal, uma construção dentro do Jockey Club, na imponente Casa Camolese. Além de reformar o imóvel, a dupla construiu um novo pavimento no subsolo, com 1 000 metros quadrados. “Lá embaixo vai funcionar um clube de jazz. Em cima teremos um restaurante, um bar que vai fazer a própria cerveja e uma grande área aberta, como os biergartens alemães”, descreve Cello. Desde 2014, ele se engalfinha com os entraves burocráticos para concluir a obra, mas o plano é abrir o espaço já no fim de outubro. Até lá, o projeto terá consumido 10 milhões de reais. “Peguei o auge da crise, mas sou um empreendedor por natureza. As dificuldades não me impedem de realizar coisas. Esse é um negócio de alma. Tanto que carimbei o meu nome nele”.

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O artista Vik Muniz e Cello Macedo, da Casa Camolese (imagem do projeto no destaque): espaço múltiplo no Jockey (Felipe Fittipaldi e Divulgação/Veja Rio)
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Em um endereço próximo à futura Casa Camolese, às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, outra novidade despontará nas próximas semanas no local onde até dezembro funcionou o Miranda. As antigas instalações da luxuosa casa de espetáculos aberta em 2012 — e que fechou em decorrência da ressaca pós-Olimpíada — receberão a primeira franquia do clube de jazz nova-iorquino Blue Note no hemisfério sul. Trazida pelo empresário Luiz Calainho e um grupo de sócios-investidores, a versão carioca da casa noturna exigiu 4,1 milhões de reais, entre a adequação de infraestrutura, campanhas de marketing e a contratação de artistas para apresentações. A programação do lugar já foi definida até novembro, e estão previstos shows com estrelas consagradas como Sergio Mendes, o quinteto nova-iorquino Spyro Gyra, a cantora portuguesa Teresa Salgueiro e o trompetista Chris Botti. A filial brasileira seguirá o mesmo padrão acústico e de decoração da matriz, fundada em 1981, no Greenwich Village, e das outras cinco espalhadas pelo mundo (além de Nova York e Rio, há unidades na cidade californiana de Napa, no Havaí, em Milão, em Tóquio e em Nagoia).

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Apresentação no Blue Note de Nova York: a filial carioca seguirá o padrão internacional (Johnny Nunez/Getty Images)

Com espaços ociosos, mão de obra qualificada e subaproveitada e tradição boêmia, o Rio oferece condições para que temperamentos indômitos arrisquem a sorte mesmo em tempos adversos. Da mesma forma, dá oportunidade àqueles que não temem o risco de reposicionar seu negócio para avançar em novas frentes. O chef Thomas Troisgros e seu sócio Deco Meisler enxergaram essa possibilidade em um amplo imóvel na esquina da Rua Barão da Torre e com a Maria Quitéria, em Ipanema. Até o fim do mês, eles inauguram no local uma loja-conceito da rede T.T. Burger, de hambúrgueres artesanais, fundada em 2013. No térreo ficará a lanchonete, enquanto o 2º andar receberá um empório com produtos como carnes, pão artesanal, batata frita e o famoso ketchup de goiabada da marca. Para adequar o ponto às exigências do projeto, foi necessário 1,5 milhão de reais, valor levantado em parcerias estratégicas. “A gente já queria aumentar o relacionamento com nossos fornecedores, um negócio de potencial enorme. Então pensamos nesse showroom”, conta Deco, que trabalhou dez anos no mercado financeiro antes de entrar na sociedade, em 2015. “Tínhamos alguns problemas, como vendas em queda e dívidas. Trocamos fornecedores, ajustamos o produto e fizemos mudanças no atendimento. A loja de Ipanema veio para amarrar esse novo conceito”, explica.

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Thomas Troisgros, em frente ao futuro T.T. Burger (fachada no destaque): a casa funcionará como lanchonete e empório (Felipe Fittipaldi e Reprodução/Veja Rio)

Até o fim do ano, o T.T. terá sete lojas, incluindo a nova unidade de Ipanema. A previsão de faturamento para 2017 é de 30 milhões de reais. Em 2016, ano considerado difícil pelo setor, foram vendidos 350 000 hambúrgueres em três lojas — uma média de 10 000 hambúrgueres por mês. Os planos para 2018 são continuar a expansão no Rio e inaugurar um ponto em São Paulo. “A crise nos tira da zona de conforto. Precisamos nos movimentar”, defende Thomas, filho de Claude Troisgros, outro empreendedor de sucesso no ramo de restaurantes, com cinco casas em seu portfólio. A cidade só tem a agradecer aos profissionais e empresários que, como eles, acreditam — e investem — no futuro.

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