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Dias Ferreira: essa rua está diferente

Um dos principais corredores gastronômicos da cidade vira point de noitadas regadas a caipirinha no copão, caixa de som e brigas, muitas brigas

Por Cleo Guimarães
Atualizado em 16 out 2020, 19h07 - Publicado em 16 out 2020, 07h00

O ritual já completou dois meses. Por volta das 10 da noite, o empresário do ramo de lavanderias Bruno Saba, 26 anos, coloca no porta-malas de seu Honda Fit umas garrafas de gin, suco de frutas, saco de gelo, caixa de som e dirige da Rua Uruguai, na Tijuca, para a Dias Ferreira, no Leblon. Ali passa a noite bebendo em pé com amigos ou, em suas próprias palavras, “azarando e fazendo uma resenha maneira”. Vira mais um no meio de uma multidão de jovens que toma a calçada e tem deixado moradores e restaurateurs da área revoltados com a “descaracterização” da vizinhança.

O empresário Bruno Saba: garrafas de gim, saco de gelo e caixa de som para curtir a noite (Leo Lemos/Divulgação)

Depois de a via ingressar no noticiário nacional pelas imagens de pessoas sem máscara badalando como se não houvesse vírus, o último episódio nada edificante que deu destaque à célebre rua do bairro foram as cenas de pugilato entre uma empresária que desfilava de biquíni dentro de um conversível e uma arquiteta, que resolveu arremessar uma garrafa d’água contra ela em desaprovação. A moça atingida saltou do carro e reagiu à agressão dando-lhe uns tapas. E a balada seguiu, não sem antes o namorado da que levou uns safanões arrancar a parte de cima do biquíni da empresária, já de volta ao carro.

Os veteranos da Dias Ferreira expressam seu descontentamento com a mudança de perfil do pedaço – um vídeo recente mostra o que parece ser um baile funk ao ar livre, com som nas alturas e clima de final de Copa do Mundo, no trecho perto da Ataulfo de Paiva. “Aqui sempre foi um lugar elitizado e bacana, mas estamos virando uma Lapa”, queixa-se Carolina Gayoso, dona do Sushi Leblon, há 34 anos na rua. Bruno, o novo habitué, discorda: “Zero Lapa. Leblon é outro nível de gente. As pessoas aqui têm perspectiva, tomam cerveja boa, não economizam. Tanto é que os vendedores nem oferecem bebida em latão porque sabem que ninguém vai comprar”, defende. O epicentro da badalação, justamente onde Bruno aloja sua caixa de som, fica hoje no entorno da estátua de Cazuza, ao lado do Boteco Boa Praça. Inaugurado há pouco mais de um ano, o bar é apontado por uma integrante da velha guarda de empresários locais como um motor das aglomerações “com menor poder aquisitivo”.

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Antonio Rodrigues, dono do Belmonte: apitaço para conter a aglomeração na frente do bar (Leo Lemos/Veja Rio)

Proprietário do Belmonte, que lota o cruzamento com a Venâncio Flores, Antonio Rodrigues engrossa o coro dos descontentes. “O Boa Praça é uma zona, o dono não bota ordem”, dispara ele, que foi multado pela prefeitura por causa da própria muvuca. Rodrigues agora tenta evitar os “bolinhos de gente” em frente ao bar. Seu método é dos mais básicos: quando junta um pessoal bebendo em pé em volta das mesas, ele usa um apito e circula, avisando: “Pode sair. Dá licença!”. De vez em quando, vê-se um bate-boca.

Desde a década de 90 conhecida pelos restaurantes, a Dias Ferreira assiste de uns anos para cá à chegada de bares badalados: além do Boa Praça, vieram o Rainha, o Stuzzi, o Garoa e o Iara Mar e Bar (caçula do grupo Canastra).  Esse movimento ajuda a explicar a transformação da rua em point de azaração e boemia, fama que já atravessa fronteiras, atraindo um público que aflui de outros estados — como a mineira Rafaela Cardoso, 25 anos. Ela veio de Belo Horizonte em companhia de uma turma de amigos e desembarcou cheia de expectativas na Dias, mas saiu meio desapontada.

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“Me falaram que vinha uma galera linda aqui. Estou achando médio”, avaliava a moça em meio ao agito. Enquanto aguardava mesa no Boa Praça, o grupo de Rafaela fez o que donos de bares e restaurantes da área mais temem: comprou bebidas de um ambulante. Um deles estava vendendo o “copão de caipirinha” a 15 reais.

Caipirinha no copão: empresários da rua reclamam dos ambulantes que vendem bebidas (Leo Lemos/Veja Rio)

Bancas de jornal e supermercados próximos também abastecem frequentadores a preços convidativos. As estudantes de publicidade Ellen Rocha, 22 anos, e Caroline Andrade, 21, moradoras da Tijuca e de Duque de Caxias, respectivamente, bebiam garrafinhas long neck de gim-tônica vendidas a 12 reais na banca da esquina enquanto esperavam ser chamadas a sentar no Boa Praça.

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“Melhor que pagar mais de 30 reais lá dentro, né?”, racionalizou Ellen. Dono do recém-inaugurado Rainha, Pedro de Artagão diz que “é nesse tipo de coisa que a gente perde muita venda”. O empresário, que possui outras cinco casas em funcionamento no Rio, optou por abrir seu primeiro bar na Dias Ferreira por vislumbrar ali uma oportunidade de atrair um público de jovens adultos – “30 plus” (com mais de 30 anos), como define – com boa condição financeira.

Point turístico: Rafaela Cardoso (de short estampado) veio de BH com amigos, mas achou “médio” (Leo Lemos/Veja Rio)

Apesar da descrença inicial dos sócios, que temiam não prosperar com um negócio dessa natureza em vizinhança sofisticada, ele conta que insistiu na ideia do bar inspirado nas tascas portuguesas e não se arrepende. A casa anda
lotando quase diariamente. Mas, para o chef, poderia ser ainda melhor. “O problema é que muita gente fica só circulando, pegando carona na azaração que rola ali, na minha clientela, sem consumir.”

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Os donos de bares e restaurantes se queixam do decreto da prefeitura que proíbe o atendimento, pelos garçons, de pessoas que não estão sentadas à mesa. Seria um ótimo ganha-pão, já que a espera é longa. Às 9 da noite de uma sexta-feira recente, quem botava o nome na lista do Boa Praça era informado de que havia 27 grupos na frente. Aparecendo o lugar, não dá para bobear: o prazo para se apresentar à hostess é de três minutos, a contar do instante em que se recebe um aviso por SMS. No gastrobar Stuzzi, logo adiante, a previsão era de pelo menos 45 minutos na fila, assim como para conseguir assento no Rainha. No Belmonte, a espera passava de uma hora.

Diante da impossibilidade de servir a clientela na rua, os empresários ameaçam até fazer greve para sensibilizar a prefeitura para sua causa. “Imagina fechar a Dias Ferreira por um dia? Acho uma boa ideia, e ela já vem sendo discutida por aqui”, diz, meio brincando, meio sério, Flavio Sarahyba, um dos sócios do Boa Praça.

Esses tempos de pandemia contribuíram para mudar a configuração da rua, à medida que vendedores informais iam ficando à míngua em áreas esvaziadas como o Maracanã e perdendo o faturamento de shows e eventos na praia cancelados – e migravam para a Dias Ferreira. “Estamos tentando melhorar”, jura Sarahyba, que diz aceitar críticas, mas se sente, de certa forma, injustiçado. “Funcionamos num ponto que por dez anos esteve vazio, vivia cheio de mendigos, de usuários de drogas, e isso ninguém fala”, argumenta. O movimento acaba transbordando para as transversais e incomoda mais gente.

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“O barulho infernal desse povo chega até o meu prédio”, reclama a estilista Heloisa Medeiros, 70 anos, há quinze moradora da Rita Ludolf, a cerca de 150 metros do furdunço da Praça Cazuza. Ela defende a teoria de que a rua começou a ficar “descaracterizada e empobrecida” quando o bairro perdeu uma de suas joias gastronômicas, o Garcia & Rodrigues. “Foi o fim de uma era”, lamenta Heloisa, saudosista. Para o bem ou para o mal, os dias da Dias estão diferentes.

(Redação/Veja Rio)

 

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