Marcelo Crivella cumpriu menos de 20% das promessas da campanha de 2016
Levantamento inédito da agência Lupa revela que o prefeito, hoje na batalha pela reeleição, honrou onze das sessenta propostas organizadas à época
Em artigo publicado há pouco mais de um mês, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso admitiu como um erro a instituição da reeleição no Brasil. FHC fazia uma autoavaliação: seus correligionários incentivaram a mudança na lei e ele próprio estreou a novidade, tornando-se o primeiro presidente da República reconduzido ao cargo, duas décadas atrás.
Vários outros políticos percorreriam essa trilha, esticando sua estada no poder. É o que busca neste momento o atual prefeito do Rio, Marcelo Crivella, 63 anos, que andou aparecendo nas pesquisas recentes em segundo lugar, atrás do antecessor Eduardo Paes (DEM).
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Em campanha pelo partido Republicanos, Crivella acusa o concorrente de ter deixado a prefeitura atolada em dívidas, argumenta que a crise aprofundou-se no contexto pandêmico e se põe em defesa veemente de sua gestão. É aí, porém, que entra em cena um efeito ingrato da reeleição, hoje renegada por FHC: sua majestade, a evidência, contrapõe o discurso adotado pelo candidato Crivella às ações do prefeito Crivella.
Um garimpo minucioso no rol de promessas sacramentadas pelo alcaide na campanha de 2016, todas registradas pelo então aspirante ao Palácio da Cidade no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), traz à luz uma constatação incômoda: das sessenta propostas organizadas em cinquenta tópicos, ele chega ao fim do mandato com onze promessas cumpridas – 82% não deixaram o papel (veja nos boxes).
+Verificamos: as promessas de Crivella na área da saúde
+Verificamos: as promessas de Crivella na área do transporte
+Verificamos: as promessas de Crivella na área da segurança
+Verificamos: as promessas de Crivella na área da educação
+Verificamos: as promessas de Crivella em áreas variadas
O balanço é resultado de um levantamento inédito conduzido ao longo dos últimos dois meses pela Lupa, agência de notícias que se dedica à aferição da veracidade de informações – o fact-checking. Entre as realizações de Crivella, sobressaem a criação de um novo programa de qualificação para professores, o aumento da presença da Guarda Municipal no Centro de Operações Rio e a retomada do programa Cegonha Carioca, de assistência a gestantes.
Mas, na frieza dos números, ele cravou apenas um de cada cinco compromissos firmados naquele 2016. “As dificuldades não foram poucas, imagina administrar uma cidade como a nossa sem recursos?”, alegou a VEJA RIO.
Na campanha, o ex-senador e bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus foi metódico e arquitetou seu programa ano a ano. Está lá: em 2017 farei isso, em 2018 farei aquilo. O documento registrado no TSE estabelecia metas a atingir em cinco áreas principais: saúde, educação, segurança pública, transporte e demais temas, chapéu que abrangia desde os rumos do Carnaval até saneamento básico e previdência.
Já na largada, Crivella, o candidato, pecou pelo excesso. Segundo análise dos profissionais da agência Lupa, o futuro prefeito se lançou em promessas que são do âmbito do poder estadual. Na seara do transporte, comprometeu-se com a finalização das obras e a operação da estação do metrô da Gávea, que seriam tocadas em parceria com o governo estadual.
Como se sabe, o projeto, soterrado por um misto fatal de escassez e desvio de verbas, teve desfecho de contornos surreais: o canteiro de obras precisou ser inundado por milhões de litros d’água para prevenir acidentes. Para a segurança, o programa acenava com uma política de incentivo aos agentes da lei, da qual não há vestígio.
Fundada em 2015, a Lupa foi a primeira agência de notícias do Brasil a se voltar para a técnica jornalística de checagem de fatos, que se disseminou nesta década mundo afora à medida que a internet foi despejando dados e mais dados ao público sem nenhum filtro.
Parece simples, mas é tarefa exaustiva separar a boa informação das imprecisões e lorotas: a equipe acompanha o noticiário nas mais variadas editorias, de política e cidades a relações internacionais, à procura de inconsistências. O objetivo é corrigi-las e divulgá-las com apuro. “Nossa primeira opção é buscar bancos de dados públicos, disponíveis para o cidadão, que assim pode checar o trabalho”, explica a diretora de conteúdo Natália Leal.
A informação oficial, porém, nem sempre está organizada, acessível e completa. No processo de aferição das propostas de Crivella, as próprias secretarias municipais forneceram boa parte dos dados. A Casa Fluminense, organização que arquiteta políticas públicas para o Rio, teve papel relevante na revisão do conjunto (todos os dados utilizados na verificação das promessas, aliás, estão disponíveis em abaixo).
Depois de dissecadas uma a uma, as propostas de Marcelo Crivella para seu primeiro mandato receberam seis etiquetas com nomes autoexplicativos: “falso”, “verdadeiro, mas”, “verdadeiro”, “exagerado”, “insustentável” e “de olho”. Numerosos, os carimbos de “Falso” (em 44 das sessenta conferidas) indicam um leque de modalidades de incúria.
Em um dos itens, por exemplo, o trabalho de fact-checking mostra que Crivella, no exercício do cargo, e após ter prometido ampliar o prazo de uso do bilhete único para três horas, vetou proposta da Câmara Municipal nesta mesma toada, apresentada em maio de 2019.
Como vereador, Cesar Maia, ocupante do principal gabinete do Executivo municipal por três mandatos e do mesmo DEM que agora abriga Paes, adjetiva o governo que se encerra em dezembro com poucas palavras: “Faltou gestão, um fracasso administrativo”.
É bem verdade que a pandemia do novo coronavírus passou como um rolo compressor sobre administradores públicos e privados, abalando economias estabelecidas e emergentes. Ceifou vidas e ainda espalha incerteza. É razoável colocar na conta da Covid-19, portanto, alguns insucessos da administração pública municipal. Mas o governo Crivella também acumulou estoque próprio de problemas.
Dois deles, bem rumorosos, vêm de 2018: o caso “Fale com a Márcia”, que envolve Márcia Nunes, a assistente do prefeito que privilegiaria cidadãos em filas para operações na rede pública, e a realização de um comício com a convocação de funcionários da Comlurb, o que configura abuso de poder político. Mais recentemente, o rebuliço deu-se em torno dos “Guardiões do Crivella”, uma turma de funcionários da Prefeitura cuja função seria atrapalhar o trabalho da imprensa na porta dos hospitais do município.
Em novo sobressalto, o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) julgou no final de setembro a legalidade do tal comício com apoio oficial e tornou Marcelo Crivella inelegível por oito anos, contados a partir de 2018. Na última semana, porém, o TSE concedeu uma liminar (provisória) que suspende a decisão e ele segue firme em campanha. Em entrevista a VEJA RIO por e-mail, o alcaide manifesta indignação ao comentar as polêmicas que pontuaram seu mandato. Considera o caso envolvendo Márcia Nunes “uma injustiça e uma maldade contra a gestão e contra essa funcionária”. As notícias sobre os “Guardiões do Crivella” são definidas como “uma mentira, uma vontade da Globo de atacar e criar fatos”.
A pendenga na Justiça também não o abala. “Não há impacto, porque não há nenhum tipo de impedimento, e vou disputar a eleição até o trânsito em julgado”, afirma. O vereador Cesar Maia, que derrama um olhar atento sobre o desenrolar das querelas na Câmara e nos tribunais, acha que o prefeito tem lá seus motivos para abrandar o que está por vir. “Neste momento, tão perto da eleição, e com o orçamento aprovado e em execução, é improvável haver qualquer efeito prático”, diz.
As crises políticas, algumas inescapáveis, mas muitas evitáveis à base de bom senso e postura republicana, contribuem para represar avanços em áreas-chave, tal como a saúde. Pois para esse terreno tão essencial o então candidato Crivella anunciou doze medidas, das quais a Lupa considerou que nove não foram cumpridas, duas se enquadram na categoria “parcialmente bem-sucedidas” (ligadas a esforços para zerar as filas de cirurgia e ao atendimento a gestantes) e uma única ganhou o carimbo de “verdadeiro”: o compromisso de manutenção do apoio às Organizações Sociais de Saúde e o acompanhamento de sua atuação.
Em sua entrevista, o prefeito aponta outras conquistas nesse campo. “Foram comprados mais de 18 000 itens em um total de 370 milhões de reais. Graças a esses investimentos, que considero inspirados por Deus, a Prefeitura do Rio foi destaque no combate ao novo coronavírus. A atual administração assegurou a compra de 27 tomógrafos e, pela primeira vez, unidades da rede de atenção primária foram equipadas com o aparelho”, diz Crivella.
As ações do prefeito neste ano pandêmico vêm sendo observadas de perto, sendo tema dos mais sensíveis no pleito que se avizinha. Vereador da base governista, Jorge Manaia (Progressistas) votou a favor do prefeito em passagens delicadas, como a apresentação de propostas de CPI, mas faz questão de frisar sua imparcialidade. “Cobrei erros e apontei ajustes necessários. Mesmo sendo da base, fui relator da CPI da ciclovia Tim Maia, cujo trabalho ajudou nas investigações do Ministério Público”, conta.
Manaia, que também é médico, faz coro com Crivella ao destacar a aquisição de respiradores e outros equipamentos pela prefeitura antes mesmo de o novo coronavírus mostrar a face nestas praias. Para o vereador, sem essa medida, muitas outras mortes teriam ocorrido e não haveria condições para o relaxamento da quarentena.
Os fatos, porém, sempre eles, mais uma vez se impõem. “Aqui no Rio passamos dos 11000 mortos”, enfatiza o também vereador e médico Paulo Pinheiro (PSOL), ex-diretor do Hospital Miguel Couto. De acordo com números da Fiocruz divulgados em setembro, o município do Rio registrou uma das maiores taxas de letalidade não apenas do Brasil, mas do planeta: 10,7%.
Pinheiro ainda acusa Crivella de ter desmantelado 300 equipes de saúde das Clínicas da Família. Esta e outras iniciativas teriam feito a cobertura minguar de 70% para 40% da população. “Mas não se pode avaliar seu governo só pela saúde. Olhe o BRT, que está com mais de vinte estações destruídas e pistas deterioradas”, cutuca o vereador do PSOL.
O debate inflamado faz parte do jogo, sobretudo em tempos eleitorais – e o trabalho de checagem do que foi prometido versus o que foi realizado justamente empresta consistência às discussões, além de deixar cristalina a lista dos principais desafios que o próximo gestor terá pela frente.
O Rio pós-pandemia vai ser uma cidade com muito por fazer na educação, na saúde, no meio ambiente e no urbanismo, entre outras tantas áreas que acumulam lacunas. Está claro que o carioca está insatisfeito com o que anda vendo nos dias de hoje. Uma recém-divulgada pesquisa do Ibope mostrou que 57% dos moradores gostariam de trocar a Cidade Maravilhosa por outras paragens, se pudessem.
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O problema mais grave enfrentado por quem vive na capital é a saúde (mencionada em 74% das respostas), seguida de educação (45%), segurança pública (37%) e corrupção (31%). Crivella e os demais candidatos já trouxeram aos holofotes suas promessas para a eleição, cujo primeiro turno foi empurrado pela pandemia para este 15 de novembro. Preste atenção ao que falam, tente discernir o factível do mirabolante, o relevante do supérfluo – e cobre depois. O Rio que queremos, exuberante, agradece o exercício de cidadania.