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Precisamos falar sobre o luto

Para a psicóloga Mariana Clark, a sensação de perda, acirrada pela pandemia, pode (e deve) emprestar novo sentido ao que fazemos da vida

Por Pedro Tinoco
Atualizado em 5 jun 2020, 18h09 - Publicado em 5 jun 2020, 06h00

A trajetória da psicóloga carioca Mariana Clark, 42 anos, levou-a a um campo árduo e espinhoso: o luto. Executiva de recursos humanos, com experiência de quase duas décadas em empresas como Natura e TV Globo, ela passou a estudar e desenvolver possibilidades de cuidado para profissionais “no auge do sofrimento, da dor, mergulhados em um processo de desorganização motivado pela vivência da perda”.

Hoje, participa dos esforços da Diretoria Especial de Reparação e Desenvolvimento, criada pela Vale após o trágico rompimento de uma barragem na cidade de Brumadinho, em Minas Gerais. Nestes sombrios tempos de pandemia, Mariana ressalta, na entrevista concedida a VEJA RIO, a importância de reconhecer o luto e evoluir com essa experiência.

Vínculos rompidos

O luto é um processo natural, desencadeado pelo rompimento de um vínculo. A gente acumula vários deles ao longo da vida, uns pequenos, outros maiores. Estima-se que uma pessoa vivencie vinte a 25 experiências de perda – e não apenas aquelas ligadas à morte. Mudança de país ou de cidade, divórcio, amputação, infertilidade, aborto, síndrome do ninho vazio, e por aí vai. Quem nunca passou por isso ainda vai passar, essa é a única certeza. Cabe a cada um de nós fazer suas escolhas, de modo a aprender com esses episódios de luto.

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A ideia da finitude

É muito perturbador pensarmos na finitude, na perda de pessoas que amamos. Quando você enfrenta isso, naturalmente começa a cultivar uma reflexão sobre como está vivendo e o que pretende fazer até morrer, de preferência bem velhinho. Como está a qualidade dos seus vínculos? Das suas relações afetivas? Está trabalhando em um lugar que o intoxica? Está pondo em prática seus sonhos? Com a perspectiva do fim, passamos a olhar a vida de modo diferente. Falar da morte é, portanto, falar da vida. Quando assimilamos o luto e passamos a entender o que estamos vivenciando, surge a possibilidade de fazermos escolhas melhores a partir daí. Escolhas mais maduras, mais lúcidas e conscientes.

Baixas na pandemia

A pandemia provoca uma sobreposição de perdas: de liberdade, de autoestima, financeira, de projetos. Somem-se a isso a distância física das pessoas e a notícia aterradora dos óbitos diários, numerosos. Estudos dão conta de que, em média, cinco pessoas são impactadas pela morte de alguém. Sistemas familiares devem se reorganizar diante do desaparecimento de um parente e os sobreviventes assumem novos papéis. Quem vai ser a mãe que se foi, quem vai cuidar de crianças que ficaram órfãs? O Brasil já superou as 30 000 mortes por Covid-19, ou seja, temos mais de 150 000 pessoas enlutadas. É um dado impressionante, que precisa inclusive ser levado em conta na elaboração de políticas públicas. Como as escolas e as empresas vão lidar com essa dor tão aguda na volta à rotina. Professores e demais educadores estão preparados para receber um aluno que perdeu o pai?

Tempo de fragilidade

Humanos diante de uma ameaça desconhecida ficam vulneráveis, frágeis, têm necessidade de ser cuidados. O  problema é que, no momento, ninguém no mundo consegue desligar essa ameaça. Não há um cientista, um líder mundial, um político no Brasil que possa dizer “vai dar certo” ou “vai acabar em breve”. Essa imprevisibilidade é desorganizadora. Como vou viver a partir de agora? Onde vou me sentir seguro? Qual é o impacto disso na minha vida? Essas questões de hoje são as mesmas que brotam no luto.

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O desafio nas empresas

Não existia, até pouco tempo atrás, espaço de validação e compreensão das dores do luto na sociedade, muito menos nas empresas. A sociedade exige um nível de felicidade incompatível com a condição humana. Desse modo, o luto, que não é doença, pode evoluir para uma depressão, para um burnout (esgotamento). Não é responsabilidade exclusiva das organizações. As pessoas carregam suas dores, mesmo escondidas, e reagem de formas variadas, mas o mundo corporativo pode potencializar o mal-estar.  É preciso humanizar o ambiente. Em uma empresa que estende a mão ao funcionário na hora do sofrimento, ele devolve com um salto grande em produtividade e engajamento. Isso é muito potente.

Outra epidemia

De acordo com a Organização Mundial da Saúde, o Brasil já é o país da América Latina com a maior porcentagem de vítimas de depressão, perto de 6% da população. Isso impacta no número de demissões voluntárias, no de afastamentos e nos gastos com planos de saúde. Agora que o mundo parou podemos aproveitar para rever valores no trabalho e em casa. A palavra da vez é “cuidado”. Precisamos desenvolver a cultura do cuidado.

Viver a despedida

Não há como se preparar para o luto. Algumas pessoas que têm mais facilidade para entrar em contato com as próprias dores costumam se sair melhor. A circunstância da morte também faz diferença. Tudo o que envolve vítimas de Covid-19, do isolamento no hospital ao velório com pouca gente e caixões fechados, é fator de stress. O ritual tem a importante função de dar  concretude à morte. Quando a despedida não é como o esperado, abre-se espaço para fantasias, dúvidas. Qual foi o último desejo do meu pai? O último abraço, quem deu? O surgimento de questões como essas é prejudicial para o processo do luto.

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Sobre empatia

A acepção mais usual de empatia, de se colocar no lugar do outro, não cabe no luto. É impossível se pôr no lugar de uma mãe que perdeu o filho, a não ser, claro, que você tenha vivido essa mesma experiência. No entanto, do ponto de vista do profissional de saúde, ou de uma rede de apoio, na escola ou na empresa, dá para manifestar interesse genuíno em ajudar. Empatia, nesse caso, é se comprometer com a dor do outro. Você não vai sentir o que ele está sentindo, mas vai ser capaz de ajudar, mostrando-se disposto a tirá-lo desse sofrimento. A crise impôs uma imensa oportunidade de reflexão.

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