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Feriados demais

Somados os dias enforcados e as datas oficiais de 2012, teremos mais de quarenta folgas no ano. Todo esse tempo desperdiçado custa mais de 20 bilhões de reais ao comércio e à indústria do estado

Por Ernesto Neves e Felipe Carneiro
Atualizado em 5 jun 2017, 14h33 - Publicado em 9 Maio 2012, 16h54

Na Idade Média, a palavra latina feriatus era sinônimo de farra. O termo, que a princípio significava apenas dia livre, com o tempo passou a abarcar também as ocasiões em que eram montados os mercados nos vilarejos europeus, garantia de agitação e festejos. Em ambos os casos, a efeméride estava ligada a algum evento religioso. Isso talvez explique a sensação atávica de felicidade que toma conta das pessoas ao ouvir a palavra feriado, transcrição quase literal na forma e no significado da antepassada medieval. E aqui no Rio temos nos esmerado em preservar essa tradição. Tome-se o exemplo do mês de abril. Descontadas a celebração da Páscoa, a homenagem a Tiradentes, a idolatria a São Jorge e a pausa para descanso no Dia do Trabalho, foram apenas dezessete dias úteis. Mas quem não aproveitou as miniférias para recarregar as baterias terá outra chance em breve. Vem aí o Corpus Christi, festa católica que paralisa o país de 7 a 10 de junho. Logo depois, entre 20 e 24, teremos tempo de sobra para refletir sobre o futuro do planeta, no recesso decretado pela prefeitura para não atrapalhar os andamentos da Rio+20. A cada ano, cariocas e fluminenses desfrutam catorze datas oficiais, número que nos põe no topo do ranking nacional das folgas, ao lado do Acre. Em 2012, contabilizados os fins de semana prolongados e os acréscimos locais, serão nada menos que 41 dias parados – situação inédita em qualquer lugar do planeta.

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Evidentemente, todo mundo gosta de passar o Natal em família, brincar o Carnaval ou viajar na Semana Santa (inclusive os jornalistas de VEJA RIO). A questão é o excesso. Da mesma forma que a ingestão exagerada de pizzas, brigadeiros e outras guloseimas faz mal ao organismo, uma quantidade exorbitante de feriados pode ser prejudicial. Não à saúde, claro, mas à economia e ao nosso próprio bolso. Pelas contas da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), suas afiliadas perdem anual­men­te 5 bilhões de reais com a paralisação nessas datas. Seria dinheiro suficiente, por exemplo, para construir um ramal do metrô do porte da Linha 4, que ligará a Barra a Ipanema. O impacto nos estabelecimentos ligados aos setores de varejo e serviços é ainda mais devastador. A cada ponte ou fim de semana prolongado, some das caixas registradoras cerca de 1 bilhão de reais, o que vai significar em 2012 um rombo de 14 bilhões. Isso tem reflexo direto nos salários e na geração de empregos. “A matemática é simples. Dias parados ou pagando adicional de feriado, no comércio, na indústria ou em serviços, significam menos lucro. E margem pequena é causa de salário menor ou menos gente na equipe. Às vezes, os dois”, resume o economista José Pastore, da Universidade de São Paulo, especialista em relações do trabalho.

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Os defensores dos feriados costumam argumentar que, quanto mais pessoas de folga, maior o público consumidor, gente que aproveita o tempo livre para gastar. Estudos mostram que esse raciocínio é equivocado. Menos de 15% dos negócios aumentam suas vendas nessas ocasiões. A grande maioria perde – e muito. Dona do instituto de depilação Pello Menos, a empresária Regina Jordão estima que deixe de ganhar 200 000 reais a cada recesso. “Fico maluca quando vejo aquele acúmulo de dias vermelhos no calendário”, diz ela, que recebe, diariamente, uma média de 100 clientes em cada um dos 45 estabelecimentos da rede. A preocupação é compartilhada por Marcelo Torres, dono de restaurantes, quatro deles no Centro – Giuseppe, Giuseppe Grill, Clube Gourmet e Laguiole. Quando os escritórios da região não funcionam, todos ficam fechados. “No ramo da alimentação é um pesadelo, perco 5% do meu faturamento mensal com essa brincadeira”, calcula. De acordo com Torres, os enforcamentos o prejudicam da mesma forma, deixando seus estabelecimentos com movimento 60% abaixo do normal. E não são só os patrões que saem lesados. Representante do centro de comércio popular da Saara, cujas lojas empregam 5?000 pessoas, Gabriel Habib afirma que o prejuízo afeta diretamente os funcionários dos estabelecimentos. “A maior parte dos ganhos dos vendedores vem da comissão. Se ficam em casa, mesmo com o dia pago, eles perdem dinheiro também”, diz.

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Os estragos causados pelo excesso de feriados não ocorrem apenas na esfera econômica. Notoriamente lenta para dar cabo dos processos, a Justiça é a primeira a bater o martelo quando o Executivo decreta ponto facultativo para servidores públicos – aquela situação em que cada autarquia ganha o direito de decidir se trabalha ou não em determinado dia. Como os tribunais têm autonomia administrativa, basta o juiz responsável pela vara criar uma portaria para que pontes de quatro ou cinco dias sejam formadas. Quem precisou de celeridade em alguma ação judicial em abril experimentou situações surreais. “Na véspera de um fim de semana prolongado, o atendimento já é ruim. Você chega ao Fórum às 4 da tarde e quase todo mundo já foi embora. Demorei duas semanas para conseguir um habeas corpus que deveria sair em 24 horas, graças ao clima de oba-oba provocado pelos feriadões de São Jorge e do Trabalho”, conta o advogado criminalista Fernando Fragoso.

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Generoso com os adeptos do pouco esforço, nosso calendário foi ganhando folhinhas em vermelho graças a dois vetores. O primeiro não é exatamente uma exclusividade local, mas de natureza religiosa, com raízes no período colonial e na herança europeia, cheia de datas dedicadas a santos e mártires. Com a promulgação da primeira Constituição republicana, em 1891, tais ocasiões foram expurgadas e substituídas pela celebração de figuras heroicas (Tiradentes) e de episódios históricos (Independência e Proclamação da República). Diante da pressão da cúpula da Igreja Católica, o calendário laico durou pouco e, já na década de 20 do século passado, começou a receber de volta as festas vetadas após a mudança de regime. Como resultado, dos onze feriados nacionais que temos hoje, sete são de origem católica. No Rio, existe até uma inversão curiosa. O aniversário da cidade, em 1º de março, é lembrado, mas dentro do escritório. O dia em que todos ficam em casa, 20 de janeiro, é o do padroei­ro, São Sebastião. “Em qualquer época da humanidade, a criação de comemorações públicas sempre foi considerada um sistema eficiente de conquistar a simpatia da população. E a Cúria soube aprofundar essa prática de forma muito competente”, afirma o historiador Milton Teixeira.

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O segundo pilar da nossa vasta coleção de folgas é a lógica populista que grassa na política fluminense, expediente que começa no desembarque da família real portuguesa. Assim que pôs os pés na cidade, dom João VI decretou inacreditáveis 100 dias de recesso. Na lista de comemorações foram incluídos os aniversários do rei, da rainha Carlota Joaquina e dos filhos do casal, Pedro e Miguel. Quase 200 anos depois, mostrando que o hábito ainda perdura, continuamos a inventar mais e mais razões para o ócio ? e para o aplauso fácil da massa. Em 2002, a então governadora Benedita da Silva sancionou o 20 de novembro como Dia da Consciência Negra e de Zumbi dos Palmares. Trata-se de uma justa homenagem, mas por que torná-la um feriado? Não poderia ser sempre no último domingo de novembro? No mesmo ano, tivemos outra canetada que se incorporou de vez à rotina. Famoso por liderar milícias na Zona Oeste, o ex-deputado estadual Jorge Babu deu de presente aos fluminenses a celebração de São Jorge, no dia 23 de abril. Nada contra o santo guerreiro, mas Santa Marcelina, São Lucas, São Januário, Santo Expedito, São Judas Tadeu e uma infinidade de outras figuras cultuadas do catolicismo também são lembrados em determinadas datas, sem que ninguém deixe de trabalhar ou ir à aula por causa disso.

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O desmesurado apreço ao tempo livre não é uma característica única dos que têm na certidão de nascimento o Rio de Janeiro como naturalidade. Na França, por exemplo, há a mesma paixão por criar fins de semana com cinco dias. Muitos países desenvolvidos e notórios por sua aplicação ao trabalho, como Japão e Coreia do Sul, também dispõem de folgas anuais em quantidade razoável (são quinze, uma a mais que a gente). Mas eles não praticam a cultura de estendê-las nem emendá-las. Em termos de produtividade, isso faz toda a diferença. No século XIX, preocupados com a confusão de santos nos países que formavam o Reino Unido, os ingleses criaram um modelo que concentrava as celebrações na primeira segunda-feira do mês. O feriado artificial, oficializado em 1841 e batizado de Bank Holiday, tornou-se tão eficiente para evitar exageros que, mesmo depois de se tornar independente, em 1922, a Irlanda continua a respeitá-lo. Uma das poucas exceções é a festa de seu padroeiro, Saint Patrick, celebrada em 17 de março. No Brasil, tentou-se um sistema semelhante em 1986, no governo de José Sarney, mas a medida foi banida quatro anos depois por seu sucessor, Fernando Collor. Desde então, ganhamos novas datas para comemorar – muitas vezes sem sequer saber o motivo de nossas tão prezadas folgas e quanto isso prejudica nosso bolso.

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