Falta de fiscalização e leniência de tutores explicam ataques de pitbulls
Projeto de lei tramitando na Câmara de Vereadores estabelece multa de 1 000 reais para quem circula com bichos sem guia nem focinheira
Atacada por três pit bulls na rua onde mora, em Saquarema, na Região dos Lagos, a escritora Roseana Murray, 73 anos, postou, 45 dias depois da brutalidade que a mutilou: “O braço direito não existe mais, mas pensa que existe. E é uma existência sombria de choques e dor, como um fantasma que afiasse as facas na cozinha”. Quando deu entrada no hospital estadual Alberto Torres, em São Gonçalo, os médicos não tiveram dúvida: a vida de Roseana estava por um fio.
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Ela perdeu um braço e uma orelha e precisou passar por duas cirurgias de reconstrução. Os cães que a atacaram foram encaminhados a um abrigo da prefeitura do balneário e, hoje, seus três tutores respondem à Justiça em liberdade.
Desde que esse terrível episódio chocou o país, pelo menos mais quatro ataques de pit bulls foram registrados no Rio. Em um deles, no Dia das Mães, uma mulher, felizmente, conseguiu salvar a filha de 7 anos das dentadas de um cachorro solto em Santa Teresa.
Acidentes envolvendo animais são sabidamente mais recorrentes do que os dados oficiais indicam. “O que existe hoje é a certeza da impunidade, já que não há fiscalização”, afirma o vereador Dr. Marcos Paulo, presidente da Comissão de Saúde Animal da Câmara Municipal do Rio de Janeiro e autor do projeto de lei que estabelece multa de 1 000 reais para tutores que circulam com bichos potencialmente perigosos sem guia nem focinheira.
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O texto, que deve ir a plenário ainda neste semestre, também prevê que os responsáveis pelos cachorros tenham de arcar com os custos hospitalares e veterinários causados por eventuais ataques. “O cerne da questão não é a raça, mas o temperamento e o comportamento do animal. Sabemos que não há solução mágica. É necessária a combinação de três fatores: uma boa lei, a atuação do poder público e a conscientização de quem cuida dos cães”, resume o vereador.
Atualmente, apenas uma lei estadual, de 2005, dispõe sobre a circulação de animais ferozes, porém, restringe as medidas às raças pit bull, fila, dobermann e rottweiler, que só podem estar em lugares públicos sob a responsabilidade de maiores de 18 anos e com coleira, guia curta, enforcador e focinheira. Mas muitas e muitas vezes isso não ocorre.
Morador de Laranjeiras, o roteirista Victor Rosa, 34 anos, diz que é comum ver vizinhos passeando com pit bulls apenas de coleira. “Quando é assim, logo entro numa loja e espero eles irem embora. A impressão que dá é de que nem passa pela cabeça da pessoa que o animal pode ficar nervoso e atacar alguém”, exaspera-se.
A lei também obriga que os donos esterilizem os pit bulls a partir dos 6 meses de idade. Do contrário, valem sanções como apreensão e multa, que pode chegar a mais de 22 000 reais, em valores atualizados. A lei está lá — o que falta é aplicá-la.
Ao longo de 2023, 51 pessoas morreram no Brasil vítimas de ataques caninos. Trata-se do recorde da série histórica, iniciada em 1996, quando o Ministério da Saúde iniciou a contagem no Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM). O índice é 27% maior que o do ano anterior.
No Rio, foram doze vidas ceifadas por ataques de cães entre 2020 e 2023. O que ainda não existe é o registro dos casos que não resultam em óbito. “Como veterinário, prefiro atender um pit bull, que costuma ser dócil, a um pinscher, que é pequeno mas irritadiço e pode morder como forma de defesa”, diz Ary Dutra, especialista da Universidade Veiga de Almeida, que, no entanto, pondera: “O que acontece é que um cão do porte de um pit bull, que pesa até 40 quilos, possui uma arcada dentária bem maior e, quando ataca, acaba causando mutilações e até a morte”.
Quem acompanha o assunto sob a lupa do comportamento observa que uma excessiva humanização dos animais pode também estar por trás dos ascendentes números de ataques. Eles crescem cercados de mimos e, não raro, se tornam ultraciosos de seu território. Nesse cenário, qualquer negativa desencadeia estresse, que pode desdobrar-se em descontrole. Também a vida em apartamentos apertados às vezes altera o humor dos caninos. “Sem conseguir se exercitar e gastar energia, vêm de novo o estresse e uma maior propensão a agressões, o que vale para qualquer raça”, esclarece Ary.
O pit bull tal como conhecemos hoje é, oficialmente, o American Pit Bull Terrier, registrado pela primeira vez em 1898, na americana United Kennel Club (UKC). Já em 1909, a raça — resultado do cruzamento entre buldogues antigos, conhecidos pela força e a capacidade de morder, e os terriers, marcados pela agilidade — passou a figurar também na American Dog Breeders Association (ADBA).
Ao longo dos séculos, o instinto de caçador desses animais acabou incentivando os humanos a testá-los em rinhas — proibidas no Brasil desde 1998. Como os mais agressivos se destacavam, alguns criadores passaram a selecionar os mais ferozes para reproduzir. Não à toa, pit bulls sofrem restrições ou são vetados em 24 países, a exemplo de Itália, Espanha, Argentina e Nova Zelândia.
Canis sérios só consideram o animal da raça pit bull o cão cuja linhagem possa ser comprovada por pelo menos catorze gerações. “O que mais tem é criação de fundo de quintal, do que eu chamo de ‘petbull’. Numa busca rápida pela internet, você encontra filhotes à venda por 200, 300 reais. É uma desgraça para uma raça que já sofre tanto preconceito”, desabafa o criador Leonardo da Guia, do canil RJaws, em Guapimirim, onde os machos são comercializados a 3 000 reais, e as fêmeas, a 4 000.
Apesar de toda a fama de mau, no momento há fila de espera para as próximas ninhadas de pit bull, que Leonardo garante serem dóceis e até grudentos, de tão apegados a seus tutores. Pode ser, mas desde que tratados e educados de forma adequada.