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Nosso prédio é uma obra de arte

Viver em um edifício de grande valor arquitetônico é privilégio de poucos cariocas. Mas, além de ser caro, implica cuidados incomuns e limitações

Por Leticia Pimenta
Atualizado em 5 jun 2017, 14h28 - Publicado em 4 jul 2012, 18h34

Escondido em meio a arranha-céus feiosos e sem nenhuma importância arquitetônica, um grupo seleto de prédios residenciais sobressai na paisagem urbana do Rio. São imóveis que remontam a meados do século passado e se transformaram em objeto de desejo de quem valoriza espaços exclusivos com status de obra de arte. Adquirir um imóvel nesses condomínios icônicos significa comprar não apenas centenas de metros quadrados, mas também um pedaço da memória da cidade. É um privilégio que não sai barato, como comprova a recente venda da cobertura do edifício Seabra, na Praia do Flamengo, por 7,2 milhões de reais. A unidade, um tríplex de 2 000 metros quadrados com elevador privativo, arremata em grande estilo uma suntuosa construção eclética, inspirada em um palácio florentino. Erguido há 72 anos pelo comendador português Gervásio Seabra e conhecido como Dakota carioca (referência ao correlato nova-iorquino, onde John Lennon morava), o edifício tem dez andares com quatro apartamentos cada um. “Foi uma homenagem que o comendador fez à sua mulher, a italiana Assunta Grimaldi, que adorava a Toscana”, conta Manuel Ruy da Silva, dono de um apartamento ali, que usa como escritório. Sua mulher, a artista plástica Maria Araújo, gosta tanto do lugar que publicou, na França, um livro em que narra sua história e alinhava detalhes a seu respeito. “É um símbolo da riqueza de estilos que influenciaram a arquitetura carioca”, diz ela.

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O preço a ser pago para viver em um condomínio com valor artístico vai além das altas cifras desembolsadas. Invariavelmente, as construções têm muitas décadas de uso. Para realizar qualquer intervenção, reforma ou modernização, o morador é obrigado a seguir regras rigorosas. No edifício Ribeiro Moreira, belo exemplar de art déco de 1928, o síndico José Carvalho controla com mão de ferro o que pode e o que não pode ser feito nos apartamentos. O prédio integra a Área de Proteção ao Ambiente Cultural (Apac) do Lido e não pode ter seu aspecto alterado. Ali é proibida a instalação de modelos split de aparelhos de ar condicionado, para evitar que a tubulação enfeie as fachadas. Em uma reforma recente, os elevadores foram renovados, mas a porta pantográfica e as antigas botoeiras de bronze ficaram intactas. Embora desativadas, as caldeiras usadas para esquentar a água no passado estão preservadas. Tamanho cuidado valorizou os apartamentos, que custam hoje em torno de 2 milhões de reais. “Faço informativos mensais para conscientizar os moradores da joia que eles têm nas mãos”, afirma Carvalho.

Não há dúvida de que viver em um monumento com décadas de história em uma cidade em plena ebulição às vésperas da Copa de 2014 e da Olimpíada de 2016 é uma experiência marcante, capaz de compensar inconvenientes como manter um climatizador mais antiquado na sala. Tanto que tais imóveis raramente são negociados pelos métodos convencionais, como os anúncios classificados. As famílias proprietárias dificilmente se desfazem deles. Os porteiros do Biarritz, a 750 metros de distância do Seabra, convivem diariamente com o assédio de potenciais compradores, sem contar turistas e estudantes que vão fotografar e desenhar o edifício. Tamanha curiosidade tem razão de ser. Erguido na década de 40, trata-se de um dos exemplares de art déco mais significativos do Rio. Projetada por Henri Sajous, arquiteto francês responsável pelo prédio da Mesbla, a construção se destaca principalmente pela fachada de balcões arredondados com dupla curvatura. Na área interna, um belo jardim com mangueiras e pinheiros é compartilhado pelos moradores. Os apartamentos têm em média 300 metros quadrados, quatro quartos e um detalhe que os distingue dos imóveis brasileiros: não há dependência de empregada no projeto original. Outro diferencial são os apartamentos dúplex no térreo. “É um lugar lindo, que dá a sensação de estarmos em Paris, em plena Avenue Montaigne. Isso compensa qualquer incômodo provocado pelos quase setenta anos de uso”, avalia a produtora cultural Alexandra Archer, moradora desde 1978.

Nem sempre a convivência entre os proprietários e os tesouros históricos onde eles vivem é tão harmônica. Há dois anos, um prédio na esquina da Avenida Delfim Moreira com o Jardim de Alah, no Leblon, perdeu parte de um painel de mosaicos de Paulo Werneck (1907- 1987), um dos maiores nomes do muralismo do século XX. Uma das netas do artista, Claudia Saldanha, diretora da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, passava pelo local quando viu funcionários de uma empresa de reformas arrancando a marteladas pedaços do trabalho de seu avô, que adorna a fachada lateral. Horrorizada, ela acionou imediatamente a prefeitura, pois a obra é tombada. A intervenção foi embargada, mas o estrago já estava feito. “É triste. Isso acontece porque as pessoas, muitas vezes, desconhecem a importância histórica e cultural de uma peça”, lamenta Claudia. No futebol existe uma expressão perfeita para ilustrar tal comportamento: “jogar contra o próprio patrimônio”.

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