Elas valem por dois
Por opção ou necessidade, as mulheres estão assumindo o duplo papel de ser mãe e pai ao mesmo tempo. Hoje quase a metade dos lares cariocas é chefiada pelo sexo feminino
Quando decidiu ser mãe, há quatro anos, a empresária Lilian Seldin optou por um caminho pouco ortodoxo para realizar seu sonho. Aos 52 anos, recém-separada de seu segundo marido, recorreu a um banco de sêmen para fazer inseminação artificial. Do pai de Patrick, seu filho que hoje tem 2 anos e meio, pouco se sabe além das características que constavam no catálogo de doadores ? cor dos olhos, cabelos, altura, profissão, idade e religião. A que mais chamou sua atenção naquele homem não identificado foi o interesse por natação. ?Era como se eu estivesse paquerando uma folha de papel. Não sei nadar e achei bacana esse hobby?, recorda Lilian. Nascido o menino e passada a fase de cuidados mais intensivos, surgiu uma nova preocupação: como desempenhar ao mesmo tempo o papel de mãe e pai, que ele provavelmente jamais conhecerá? Proprietária da pousada Locanda della Mimosa, em Petrópolis, e representante de uma importadora de vinhos, Lilian é uma profissional bem-sucedida que cumpre com desenvoltura tarefas intrínsecas da maternidade, de provedora e de chefe de família. No entanto, achava que o garoto precisava de algo mais. Quando Patrick completou 1 ano, ela resgatou sua origem botafoguense e deu um mergulho no universo do futebol. Passou a ver os jogos do clube ao lado do filho e se prepara para levá-lo ao Engenhão, tarefa que pretende cumprir já no ano que vem. ?Quero que ele sinta aquela energia. Acho que vai ser um presente tanto para ele quanto para mim?, diz Lilian.
Acumular as funções de mãe e pai é uma realidade cada vez mais comum entre as cariocas. Dados do Instituto Pereira Passos compilados do Censo do IBGE mostram que 46% das residências da cidade são chefiadas por mulheres (isso sem contar aquelas em que elas mandam e eles obedecem). Há uma década eram 35%, contra menos de 25% em 1991. Se no passado tais famílias eram vistas como um potencial sinal de desestruturação, hoje são tidas principalmente como uma decorrência do novo papel feminino na sociedade. Não à toa, é comum perceber nessas novas configurações mães que tomam para si tarefas tipicamente paternas, seja assistir ao jogo do time do coração ao lado do filho, seja cobrar resultados escolares ou o cumprimento de regras de disciplina. ?Até duas décadas atrás, enxergar-se sozinha à frente de uma família era quase um pesadelo. Hoje, essa situação é encarada como um estilo de vida?, diz Tania Zagury, especialista em educação.
Muito da figura paterna que conhecemos hoje tem origem em uma concepção familiar que remonta ao fim do século XIX. É de lá que veio a imagem do patriarca como personificação do poder, instância superior na disciplina dos filhos e exemplo a ser imitado. A mulher, nesse arranjo, respondia pelos cuidados com a prole, incluídas aí as demonstrações de afeto. Tal modelo foi drasticamente alterado a partir de meados do século passado, com a entrada feminina no mercado de trabalho, a independência econômica das mulheres e formas cada vez mais eficazes de controle de natalidade. Ainda assim, muitos dos traços da antiga configuração subsistem por um motivo simples: eles são importantes para a formação da personalidade dos filhos. Especialistas dizem, por exemplo, que o apoio e a aprovação do pai durante o período escolar e a adolescência são cruciais no desenvolvimento da autoestima dos filhos, pois reconhecem nele uma importante chancela a suas conquistas. ?Mesmo em um contexto em que são cada vez mais comuns os lares chefiados por mulheres, é inegável a importância da figura paterna?, diz o terapeuta Moisés Groisman.
Seja por opção ou por necessidade, nunca é simples para uma mãe ocupar o vácuo deixado pelo pai ausente. A professora aposentada Léa Fellipo viveu na pele as dificuldades de comandar um lar depois que seu marido morreu, em 1999. Na época, a filha caçula, a atriz Samara Fellipo, então com 19 anos, engrenava na carreira com um papel em Malhação, enquanto seu irmão, Toni, com 23, concluía o curso de direito. ?Os dois estavam em um momento importantíssimo da vida, preparando-se para dar os primeiros passos sozinhos, quando me vi na situação de ter de garantir todo o apoio a eles, fosse material ou emocional?, recorda Léa. ?A Samara, em especial, sentiu muito a perda, pois ela sempre acreditou que teria um bom relacionamento com o pai, coisa que nunca aconteceu.? Para a atriz, que hoje tem uma filha de 3 anos, Alicia, o amparo da mãe foi fundamental para que superasse a perda. ?Minha mãe foi um exemplo em termos de retidão moral. Soube ser dura quando precisava e dar carinho quando necessitávamos. Era ela quem controlava meus horários nas festinhas. Agora me ajuda na criação da Alicia enquanto o pai dela está morando nos Estados Unidos?, diz Samara, casada com o jogador de basquete Leandrinho Barbosa, contratado do time americano Indiana Pacers.
Buscar uma definição precisa sobre o que é exatamente uma família hoje é tarefa complexa. Tal noção abarca atualmente tanto o modelo convencional, comandado por apenas um dos cônjuges, como núcleos formados por casais de mesmo sexo e seus filhos. Da mesma forma, a evolução da medicina reprodutiva revirou drasticamente os conceitos de paternidade e maternidade, ao introduzir elementos como bancos de óvulos, de sêmen e barrigas de aluguel. Em meio a um cenário tão fluido, a psicologia moderna ainda não possui elementos para estabelecer um novo padrão familiar. ?Outro dia ouvi uma piada no meio acadêmico que achei interessante. Dizia que família é o grupo de pessoas que têm a chave da mesma casa?, brinca a psicóloga Rosely Sayão. No caso da analista de marketing Cristina Piloto, as chaves do apartamento onde vive no Humaitá são dela e da filha, Beatriz, de 12 anos. Cristina ficou grávida de Bia quando morava na Austrália. Sem apoio do pai da menina, tomou para si a missão de criar a filha sozinha. ?Não sei dizer se ela sente falta de uma figura paterna, até porque ela nem sabe o que é isso. Eu mesma assumi esse papel, que dizem ser masculino, de impor limite e estimular o senso de responsabilidade?, diz Cristina. O mesmo acontece com Vivian Lima, 25 anos, publicitária, mãe de Giovanna, 3 anos. ?Se a mulher consegue enfrentar as pressões e a competitividade do ambiente de trabalho, com certeza dá conta de ser pai e mãe ao mesmo tempo?, diz ela.
No esforço para suprir a ausência do pai, é comum mães usarem toda e qualquer referência que possuem do universo masculino incluindo-a no processo de desenvolvimento dos filhos. Separada do marido há vinte anos, Giselle Romão educou praticamente sozinha Priscila, de 25 anos, e Alexandre, de 23. Para ensinar os filhos a andar de bicicleta, por exemplo, usou como ponto de partida as dicas que recebeu de seu pai quando ela própria era apenas uma menina e estava nessa mesma situação. ?Fui para o mesmo lugar onde eu aprendi a pedalar sem as rodinhas laterais e expliquei tudo exatamente do mesmo jeito que ele fez comigo quando eu era garota?, recorda Giselle. Mais difícil foi falar de sexo com o filho quando ele era adolescente. ?Esse tipo de conversa preferi deixar de lado, mesmo porque acho que nos dias de hoje nenhum pai chama o filho no canto para explicar coisas que ele está cansado de saber. Eu estava ali disponível se ele quisesse, mas ele nunca me perguntou nada?, diz ela.
Incorporar papéis inesperados e que fogem às convenções exige um grau de adaptabilidade e desprendimento fora do comum. Sem a presença de um parceiro com quem dividir as angústias de educar um filho, há quem recorra à ajuda externa para enfrentar uma tarefa tão complexa. A preparadora de elenco Viviane Ávila da Silva, 35 anos, mãe de Davi, de 7, foi buscar um especialista para montar um núcleo familiar que não contempla a presença do pai do garoto (ele visita a criança apenas esporadicamente). ?Fizemos terapia, eu e meu filho, e hoje sabemos claramente como enfrentar essa situação. Não posso e não quero abrir mão do trabalho, que consome muito do meu tempo, mas aprendi como valorizar o tempo que passamos juntos?, diz Viviane. Nesses momentos, toda a sua atenção é voltada ao filho. Em meio às brincadeiras, vale até mesmo encenar disputas de MMA, uma das paixões do garoto, que é fã do lutador Anderson Silva. ?Só não pode puxar o cabelo, porque aí ela fica muito brava?, diz Davi. Para uma criança, não há nada mais assustador do que tirar do sério quem é mãe e pai ao mesmo tempo.