Em meio a crise, Museu Nacional adia apresentação de manto tupinambá
Lideranças indígenas afirmam não terem sido chamadas para recepcionar o objeto, sagrado para os tupinambás; além disso, obras podem parar por falta de verba
No 2 de setembro, completam-se seis anos do incêndio que destruiu quase todo o acervo que estava em exposição no Museu Nacional, uma perda incalculável para o país. E a instituição vive outro momento difícil, com uma crise financeira que pode parar as obras de reconstrução e um grande desentendimento com lideranças indígenas em torno do manto tupinambá que foi devolvido pela Dinamarca ao Brasil.
O retorno do objeto, doado para o acervo do museu, seria celebrado em uma cerimônia nesta semana, de quinta (29) a sábado (31). O Ministério dos Povos Indígenas anunciou, no entanto, que ela acontecerá agora nos dias 10, 11 e 12 de setembro, Quinta da Boa Vista, onde fica a instituição.
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A repatriação do manto foi resultado de uma negociação iniciada há pelo menos dois anos, que envolveu o Museu Nacional, a Embaixada do Brasil na Dinamarca, o Itamaraty e líderes indígenas brasileiros, como a artista visual Glicéria Tupinambá, cacica Valdelice Amaral de Jesus e cacique Babau.
Em julho, a instituição confirmou a chegada do item. As lideranças indígenas, no entanto, reclamaram do fato de não terem chamadas para recepcioná-lo. “O manto precisa de cuidados religiosos, e ainda não conseguimos prestar os rituais do nosso povo para esse ancestral. É uma peça sagrada, não é uma obra de arte“, disse Glicéria à Folha de S. Paulo, na época.
O museu, ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), negou à Folha de S. Paulo que exista algum conflito. Mas, no dia 19 de agosto, o Conselho Indígena do Povo Tupinambá de Olivença (Cito) publicou um vídeo em sua página no Instagram que mostra um desentendimento entre o diretor do museu, Alexander Kellner, e os caciques, durante uma reunião na Bahia.
Kellner negou que o povo tupinambá tenha sido avisado sobre a chegada do manto, via WhatsApp, quatro dias depois da repatriação. Ele, então, foi interrompido por indígenas, que tiraram o microfone de sua mão. “Alguém entraria na sua casa e diria que você é mentiroso?”, diz o início da publicação.
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Curador das coleções etnográficas do Museu Nacional, o professor João Pacheco de Oliveira afirmou que os tupinambás terão acesso ao manto nas próximas semanas, antes da apresentação do objeto à sociedade, para a realização de seus rituais.
A cacica Maria Valdelice Amaral de Jesus, a Jamopoty, afirmou à Folha que o acordo com os indígenas seria receber o manto ainda no aeroporto. Porém, a chegada da peça aconteceu de forma sigilosa, e eles só foram informados depois.
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“A violência espiritual é uma forma insidiosa e profunda de agressão, que atinge a essência do ser humano, sua alma e sua conexão com o sagrado. Diferente das formas físicas ou psicológicas de violência, a violência espiritual busca minar ou destruir a fé, as crenças, e a identidade espiritual de uma pessoa ou de uma comunidade”, diz outra publicação do Cito.
O Museu Nacional afirma que enviou a todos os integrantes do grupo de trabalho, inclusive aos indígenas, um e-mail sobre a chegada do manto. A instituição diz, ainda, que o comunicado foi impresso e mostrado aos tupinambás.
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“É importante reforçar que, em momento algum, o diretor do museu, Alexander Kellner, classificou qualquer integrante do povo tupinambá como mentiroso. Ele apenas esclareceu que não é verdade que os indígenas tenham sido informados pela direção do Museu Nacional, sobre a chegada do Manto Tupinambá, via mensagem pelo aplicativo WhatsApp”, diz a instituição, em nota enviada à Folha.
Com cerca de 1,20 metro de altura por 80 centímetros de largura, o manto foi confeccionado em sua maioria com penas de guarás, mas também com plumas de papagaios, araras-azuis e amarelas. Objeto sagrado para os tupinambás, ele teria sido levado à Europa por holandeses, por volta de 1644.
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O item foi doado ao Museu Nacional pelo Museu Nacional da Dinamarca, que detém, desde 1689, outras quatro peças semelhantes. Existem ao menos 11 mantos espalhados pelo mundo, e é a primeira vez que um deles integra a coleção de um museu no Brasil.
Os demais estão no em Copenhague, no Museu Nacional da Dinamarca (quatro); em Florença, na Itália, no Museu de História Natural de Florença (dois); em Milão, também na Itália, na Biblioteca Ambrosiana; em Basileia, na Suíça, no Museu das Culturas; em Bruxelas, na Bélgica, no Museu Real de Arte e História; e em Paris, na França, no Museu das Artes e Civilizações da África, Ásia, Oceania e Américas.
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Falta de verbas pode parar obras
Paralelamente, as obras de reconstrução do museu correm o risco de serem paralisadas ainda este ano. A UFRJ captou até agora 261 milhões de reais, pouco mais da metade do valor previsto inicialmente para reabrir o lugar. Apenas 30% das intervenções foram concluídas nesse período.
Em setembro do ano passado, quando a fachada foi reinaugurada, autoridades do governo federal anunciaram que a conclusão seria antecipada para 2026. Essa data agora se mostra inviável, de acordo com o diretor da instituição, Alexander Kellner, afirmou ao jornal O Globo.
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Ele diz que o lugar só será entregue à população em 2028. Kellner frisa ainda que, além do orçamento inicial de 491 milhões de reais, vai precisar de mais 109 milhões. E, para garantir o ritmo das obras, precisa da liberação de 50 milhões até novembro.
Em um relatório do projeto feito este mês, o museu explica que todas as fachadas do bloco 1 e a claraboia na entrada principal foram restauradas, enquanto parte dos telhados foi refeita. Foram utilizados cerca de 60 milhões de reais para isso.
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Também estão prontas as lajes de cobertura nos blocos 1,2 e 3; os vãos e as alvenarias foram consolidados no bloco 1; esculturas centenárias de mármore de Carrara atingidas no incêndio foram restauradas e foram feitas réplicas, instaladas no topo do palácio. O orçamento dessas melhorias não foi divulgado.
Do orçamento previsto de 491,7 milhões de reais, 156,5 milhões vêm de recursos federais via BNDES, Ministério da Educação (MEC), Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e emendas parlamentares. Outros 104,5 milhões são de recursos da iniciativa privada, de empresas como Vale, Bradesco e Itaú.
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A Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) também prometeu, em agosto de 2020, repassar 20 milhões para o museu, o que ainda não aconteceu. A entidade afirma que a doação ainda não aconteceu porque o museu “não cumpriu exigências estabelecidas”. Segundo a assembleia, o dinheiro tem que ser transferido para a UFRJ, representante legal da instituição, e não para a Associação dos Amigos do Museu Nacional, como quer a instituição.
O presidente da Firjan, Eduardo Gouvêa Vieira, disse ao Globo que estuda como pode ajudar no projeto do museu. Ele comparou o caso com o da Catedral de Notre Dame, em Paris, que pegou fogo em 2019 e já está sendo entregue. “Uma suposta inauguração para 2026 precisa de aporte. Precisamos de mobilização e incentivo da sociedade civil”, frisou.
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Em nota, o MEC afirmou que “está em diálogo com outros órgãos governamentais a fim de captar recursos para auxiliar na reconstrução, como a Petrobras e o Ministério da Cultura“. E garantiu que serão repassados, “ainda em 2024, mais 14,2 milhões de reais para a UFRJ, visando atender a reforma do anexo do palácio”.