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Clubinho da fé: o que é e como funciona a Ordem do Santo Sepulcro

Regida por estatuto secular, interessados precisam ser indicados por outro membro, pagar joia de 1 000 dólares e vestir capas imponentes

Por Sofia Cerqueira
Atualizado em 6 abr 2018, 15h00 - Publicado em 6 abr 2018, 15h00
Na Igreja da Antiga Sé, onde fica a sede da ordem no Rio: Eliana Moura, Gilson Araújo, Gilson Júnior,
Isis Penido, Luiz Guilherme Rodrigues, Fernando Bicudo e Isabelle Lessa participam ativamente (Felipe Fittipaldi/Veja Rio)

No último domingo de Páscoa, enquanto fiéis aguardavam a missa na Catedral do Rio, um grupo ostentando capas suntuosas até o tornozelo surgiu enfileirado pela entrada principal da igreja e se acomodou nos primeiros bancos. A mesma organização, com mulheres de véus negros e homens de branco, todos de luvas e cruzes vermelhas bordadas nas vestes, marcou presença, em janeiro, nos festejos do padroeiro da cidade, acompanhando a imagem de São Sebastião pelo Centro. Meses antes, eles podiam ser vistos também nas ruas de Ipanema, durante a procissão de Nossa Senhora da Paz. Quem frequenta eventos solenes ou datas comemorativas da Igreja Católica provavelmente já deparou com um deles. O estranhamento diante dos pomposos cavaleiros e damas, como são intitulados por estatuto secular, é inevitável. “É uma honraria muito grande usar essa capa, mas as pessoas pensam que sou padre e pedem bênção”, conta o diretor de óperas Fernando Bicudo, presidente do Theatro Municipal. “Já acharam até que eu estava com roupa de Carnaval”, recorda a socialite Isis Penido. A lembrança das vestimentas do bruxinho Harry Potter, vamos confessar, também vem à cabeça. Bicudo e Isis estão entre os cariocas mais atuantes da Ordem Equestre do Santo Sepulcro de Jerusalém, instituição que começa a chamar atenção no Rio com membros de alto poder aquisitivo, sobrenomes de peso e pessoas influentes. Sectária de paramentos e rituais da Idade Média, a confraria tem a missão de financiar iniciativas que protejam e estimulem a vida cristã — não no Rio, mas lá na Terra Santa. “Aqui pode até ter gente que nunca ouviu falar, mas na Europa e nos Estados Unidos somos respeitadíssimos. Sou chamada de excelência”, orgulha-se Isis, que, na hierarquia da entidade, é lugar-tenente, cargo máximo entre os leigos.

(Veja Rio/Veja Rio)

Presente em 38 países, com regras semelhantes às de um clube fechado, daqueles em que persona non grata leva bola preta, a seleta agremiação reúne por aqui nomes como Dulce Pugliese de Godoy Bueno, que foi casada com o fundador da Amil, Edson Bueno (1943-2017), e Maritza de Orleans e Bragança, da família real brasileira, além das socialites Antônia Frering, Gisella Amaral, Alda Soares e Eliana Moura. Na lista estão ainda advogados tarimbados, como Gustavo Miguez de Mello e Pedro Trengrouse, o cirurgião plástico Carlos Fernando Gomes de Almeida e o deputado estadual Carlos Roberto Osório. No Brasil, embora tenha surgido primeiro em São Paulo, nos anos 50, é no Rio que a ordem conta com mais adeptos. São quarenta na capital paulista, setenta em Salvador e 103 aqui, sendo 68 cavaleiros, 31 damas e quatro membros do clero (com função de apoio). Nos últimos cinco anos, de fato, a filial carioca vem ganhando força. Em maio, pela primeira vez, a autoridade suprema da instituição, o grão-mestre Edwin O’Brien, monsenhor americano radicado no Vaticano, fará uma visita oficial ao Rio. Na ocasião, que coincide com os trinta anos de atividade da ordem na cidade, será lançado um livro sobre a sua história e apresentado o espetáculo O Juízo Universal, no Municipal, com parte da renda revertida para Jerusalém. “Fazemos um trabalho sério. Não é uma quermesse para pessoas ricas ficarem junto do padre”, defende-se Luiz Guilherme Rodrigues, 26 anos, o mais jovem integrante no mundo (a idade mínima é 25 anos). De uma família tradicional, ele estudou artes e marketing em Londres e Paris e trabalhou no grupo Louis Vuitton. “É uma ordem solene, não antiquada. Sou um católico millennium: tatuado, que gosta de samba, boate, tudo normal”, esclarece.

Capas produzidas no Centro: o estilista Wanderson de Castro cobra 1 100 reais pela veste (Felipe Fittipaldi/Veja Rio)

Ostentar a indumentária da ordem e bazofiar o título de cavaleiro ou dama, no entanto, não é para todos. Primeiro, o candidato tem de ser recomendado e apadrinhado por um membro. Além da indicação e de ser católico praticante (atestado por uma paróquia), o pretendente precisa apresentar documentos que vão de comprovantes de batismo e casamento religioso (se for o caso) até o curriculum vitae e certidões de antecedentes criminais, estadual e federal. Depois, ele é sabatinado pelo postulantado, uma comissão dentro da própria entidade. O processo, que tem de ter o aval do cardeal Orani Tempesta, arcebispo do Rio, é enviado a Roma e submetido ao grão-mestre, o monsenhor americano. Uma vez aprovado, o noviço precisa fazer um curso preparatório e pagar joia de 1 000 dólares. Além disso, deve se comprometer a desembolsar a anuidade de 1 400 reais. Todo o dinheiro, segundo o regimento, é enviado ao Patriarcado Latino de Jerusalém (espécie de arquidiocese de lá), onde os representantes do Rio — junto com doações de outros países — mantêm 100 creches, noventa paróquias, 58 asilos, escolas e universidades. “A ordem não é restrita a pessoas importantes, mas a contribuição obrigatória acaba fazendo uma seleção”, admite o construtor Gilson Araújo, 81 anos, um dos membros mais antigos. Fiel aos dogmas da Igreja, a instituição avalia com rigor casos de mulheres separadas. “Vão querer se casar de novo, o que a Igreja não permite. Agora, tanto homens como mulheres têm de ter uma conduta ilibada. Não podem sair dando escândalo nem usando baby look por aí”, adverte Isis Penido, que trabalha com afinco para dar mais visibilidade à confraria que chefia. A opção sexual, seguindo a postura acolhedora do papa Francisco, não é empecilho. “Houve uma época em que convidava amigos gays assumidos e me pediram para não prosseguir com a conversa. Isso mudou”, recorda Gisella Amaral. Católica fervorosa, ela fala com bom humor dos trajes da ordem: “Tenho prazer em servir a Deus e fazer caridade, sou um Batman da fé”.

O cirurgião Carlos Fernando de Almeida: intimidado com a suntuosidade da capa (Fabio Cordeiro/Veja Rio)

Como na Idade Média, o ritual que conclama um membro da ordem é cheio de pompa e circunstância. Na investidura, nome da cerimônia, geralmente celebrada pelo cardeal, usa-se uma espada de ouro – apontada para o cavaleiro, de joelhos, no momento da bênção. No caso das damas, o rito é feito com um Evangelho sobre a cabeça. Por ano, dez novos membros têm sido aprovados. Número igual ingressará em maio. Estão na lista o deputado federal Hugo Leal e Angela Costa, presidente da Associação Comercial do Rio. Numa clara tentativa de tornar a organização mais conhecida, os padres Omar e Jorjão, dois sacerdotes populares na cidade, também serão proclamados cavaleiros na solenidade que ocorrerá na antiga Sé, no Centro. No clero, a veste se resume a uma pequena capa sobre a batina. Os leigos gastam mais de 5 000 reais, entre cerimônia, coquetel e paramentos – só o manto custa 1 100 reais, e as insígnias usadas no pescoço, 800 reais. Até alguns anos atrás, tudo vinha de Roma. Hoje, as vestimentas são feitas pelo estilista Wanderson de Castro em seu ateliê no Centro. “Estou acostumado a lidar com senhoras da sociedade. Faço capas melhores do que as da Itália”, gaba-se ele, que tem clientes fora da ordem, como a socialite Narcisa Tamborindeguy. Além de financiarem instituições de caridade em Jerusalém e arredores, os discípulos da confraria têm obrigações, como participar de reuniões regulares e ir a eventos com a indumentária. Tesoureira da entidade, a empresária Dulce Pugliese Bueno diz que a ordem trouxe mais espiritualidade para sua vida. Ela tem a missão de ficar no pé dos associados. Com jeitinho, abordou Carlos Fernando Gomes de Almeida, cirurgião plástico com uma horda de clientes famosas. “Ele é um amor, mas estava inativo e não participava de nada”, justifica Dulce. O médico, por sua vez, diz que não ficou chateado com ela. “Fui convidado a entrar pela Gisella Amaral e aceitei porque sou um homem de fé, mas fico intimidado com a suntuosidade da capa”, afirma ele, que só usou o traje na investidura, em 2015. O deputado Carlos Osório, convidado para a agremiação após integrar a coordenação da Jornada Mundial da Juventude, é outro que mantém a veste cheirando a nova. “Respeito as tradições e sei das responsabilidades, mas só usei três vezes. Meus filhos acham a capa um mico máster”, revela.

Monsenhor André Sampaio: puxão de orelha nos discípulos que se excedem na internet (Fabio Cordeiro/Veja Rio)

A história da Ordem Equestre do Santo Sepulcro de Jerusalém remete às Cruzadas, termo usado para designar os movimentos de cavaleiros que partiam da Europa Ocidental em direção à Terra Santa (Israel, Cisjordânia e Jordânia) com o objetivo de manter o domínio cristão. Sua fundação é atribuída ao militar francês Godofredo de Bulhão, em 1103. Naquela época, entre os séculos XI e XIII, surgiram outras sociedades, como a dos Templários, já extinta, e a de Malta, voltada para a assistência hospitalar. Com o passar dos séculos, a Ordem do Santo Sepulcro, batizada numa referência ao local da ressurreição de Cristo, deixou os embates a cavalo. A organização — na qual mulheres só passaram a ser admitidas no século XIX — reúne 30 000 membros no mundo, que custeiam ações caritativas, culturais e sociais naquele conflituoso pedaço de terra. Estima-se que hoje só 2% da população de Israel seja católica. “A missão principal é ajudar a região, o que não impede de atuar aqui”, diz monsenhor André Sampaio, o prior da instituição, cargo abaixo só de dom Orani na hierarquia. Recentemente, a confraria ajudou uma igreja danificada pelas chuvas em Madureira e bancou o almoço de 1 500 pessoas carentes, após a missa de Páscoa na Catedral. Única ordem com o título de pontifícia, ou seja, sob a égide direta do papa, ela sempre teve nomes da elite e cabeças coroadas. O imperador dom Pedro II, talvez em outra fase ativa do Santo Sepulcro no Rio, o presidente Dwight D. Eisenhower (mandatário americano de 1953 a 1961) e a princesa Grace Kelly figuram entre os ilustres que usaram sua capa. “Essas ordens cavaleirescas estão meio fora de moda. Nas castas mais elevadas ainda se dá valor, mas a população nem sabe o que é”, avalia padre Edvino Steckel, capelão magistral da Ordem de Malta.

(Veja Rio/Veja Rio)

Queiram ou não, a Ordem do Santo Sepulcro ainda traz status. Em viagem aos Estados Unidos, após dar uma aula na Universidade Harvard, o advogado Pedro Trengrouse passou por Nova York e assistiu a uma missa lotada na Catedral de St. Patrick. Um auxiliar do clero, ao ver o pin da entidade em seu blazer, o encaminhou para o primeiro banco. “Foi uma demonstração de consideração com a ordem. Essas organizações tiveram papel importante não só na igreja, mas na construção do mundo como a gente tem hoje”, diz o professor da FGV. Na primeira peregrinação a Israel e Roma organizada pela confraria carioca, em 2017, também não faltaram salamaleques. “Aqui já me chamaram de viúva de São Sebastião, mas no Vaticano, quando identificavam as vestes, os guardas beijavam minha mão”, exalta a socialite Eliana Moura. “Os turistas chegavam a fazer uma fila para tirar fotos com a gente”, acrescenta a advogada Isabelle Lessa. Atuante na ordem, a jovem de 30 anos segue à risca o protocolo: vai às cerimônias oficiais de véu, vestido longo, meia-calça e sapatos negros, sob o manto. “Cumpro meu dever, mas não quero que fiquem imaginando que ali está uma beata ou santa. Sou uma garota comum”, ressalta. A ordem não faz o papel de detetive, garante monsenhor André, mas prega o bom-senso. “Já dei um puxão de orelhas num cavaleiro que se exaltou no Facebook com linguajar inapropriado”, confessa. Na história da entidade no Brasil é sabido que um único membro foi expulso, mas não se revela a causa. A imponente capa, nesse caso, não protege de todos os pecados.

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